A viagem de Chihiro: explicação e resumo do filme
Escrito, desenhado e dirigido por Hayao Miyazaki, o filme tem como protagonista Chihiro, uma menina que irá mudar de cidade com os pais, mas acaba caindo numa armadilha no meio do caminho. Os três vão parar em um mundo mágico, cheio de criaturas sobrenaturais como feiticeiras e dragões típicas do folclore japonês. A missão de Chihiro, a partir de então, passa a ser salvar os próprios pais e sair desse mundo paralelo.
O filme de animação japonesa discute a questão da identidade, fala sobre o percurso de amadurecimento e apresenta para o espectador uma jornada de autorreflexão. A viagem de Chihiro (2001) é uma produção repleta de metáforas e simbologias que permite uma série de interpretações.
(atenção, esse artigo contém spoilers)
Uma história de amadurecimento pessoal
Chihiro, a protagonista que é uma jovem menina, passa por mudanças em vários níveis: ela está amadurecendo ao entrar na pré-adolescência, mas é também uma criança que está mudando de cidade contra a sua vontade, ou seja, há também uma mudança espacial envolvida.
Diante de mudanças tão drásticas, ela precisa lidar com os seus próprios medos e aprender a ser corajosa diante de situações difíceis.
O filme começa, literalmente, num espaço de transição, dentro de um carro entre um lugar e outro. Fechados dentro do carro, os três já não estão nem mais na cidade de onde saíram, nem ainda propriamente chegaram no destino.
Perdidos, a viagem nos mostra que esse percurso de transição não é nem sempre linear e apresenta alguns sobressaltos imprevistos pelo caminho. O próprio título A viagem de Chihiro pode ser lido por duas perspectivas: por um lado ele fala sobre literalmente esse percurso espacial, essa transição entre um lugar e outro, e por outro fala da viagem subjetiva, da jornada pessoal.
Por se tratar de um filme sobre o amadurecimento pessoal, A viagem de Chihiro se insere no gênero coming of age, que trata justamente desse crescimento para a vida.
O percurso de Chihiro lembra o de outras tantas meninas de histórias infantis: chapeuzinho vermelho, que também está a meio da caminho quando é interrompida por um imprevisível lobo, Alice no País das Maravilhas, que subitamente vai parar em um novo mundo e precisa encontrar o caminho de volta para casa, ou mesmo O mágico de Oz, onde Dorothy se vê imersa num contexto fantástico e faz de tudo para voltar a vida real.
Chihiro é uma personagem feminina independente
A heroína do filme é uma personagem feminina, como são muitas as protagonistas de Miyazaki. No longa-metragem o amigo Haku não é propriamente o seu par romântico que a resgata de uma situação de perigo, os dois são grandes parceiros que cuidam um do outro quando é preciso.
O primeiro a oferecer ajuda é Haku, que auxilia Chihiro assim que ela se percebe desesperada e perdida no novo mundo.
Mais tarde, quando Haku se vê com problemas, é Chihiro que arrisca a sua própria vida para salvá-lo. Ela sente amor por Haku e faz todos os sacrifícios para salvá-lo, para retribuir o que fez por ela, mas não podemos dizer que esse amor se insere no gênero romântico.
Na animação japonesa a relação entre o personagem masculino e feminino se diferencia das histórias de amor dos contos de fada. Haku não é o rapaz que surge para salvar a moça quando ela se encontra em risco, no longa metragem Chihiro é autônoma, independente, e vai contando com a ajuda de uma série de personagens que surgem a meio do seu percurso, entre eles Haku.
A questão da identidade e da mudança de nome
Quando Chihiro assina o contrato de emprego se vê obrigada a mudar de nome. No outro mundo, a feiticeira transforma Chihiro em Sen sem que a mudança seja propriamente escolhida pela menina. Sem encontrar outra saída, Chihiro aceita ser chamada de Sen.
No filme de Miyazaki, a questão do nome tem uma simbologia muito forte. Ao entrarem no outro mundo os seres são “rebatizados” e acabam se transformando em algo que não eram. Haku, por exemplo, não era o nome original do amigo de Chihiro.
Num dos diálogos mais importantes do filme, o Haku alerta Chihiro para a importância de lembrar o próprio nome:
Haku: A Yubaba controla-nos porque nos roubou os nomes. Aqui o seu nome é Sen, mas guarda em segredo o teu verdadeiro nome.
Chihiro: Ela quase me roubou, já pensava que era a Sen.
Haku: Se ela te roubar o nome, não conseguirá voltar para casa. Eu já não me lembro do meu.
Aqui, o nome está intimamente ligado ao conceito de identidade. O nome próprio de cada um carrega uma história, um passado, gostos pessoais, traumas, e, ao cruzarem a fronteira para o novo mundo e aderirem a um outro nome, tudo fica para trás.
Chihiro ao se tornar Sen vira mais uma no meio da multidão. Para além da mudança do nome apagar a identidade, todos ali usam o mesmo uniforme inclusive, e são tratados de forma semelhante, de modo a que não existe uma distinção entre um e outro.
A questão do nome é tão importante para o filme que é ao descobrir o verdadeiro nome de Haku que Chihiro quebra o feitiço. Ela está voando nas costas do dragão quando vê o rio e se recorda do nome original de Haku.
Ao pronunciar o nome verdadeiro de Haku, ele deixa de ser um dragão e se transforma em menino novamente.
Chihiro: Acabo de me lembrar. O teu verdadeiro nome é Hohaku.
Haku: Chihiro, obrigado. O meu verdadeiro nome é Nigihayami Kohaku Nushi.
Chihiro: Nigihayami?
Haku: Nigihayami Kohaku Nushi.
Crítica ao capitalismo e como Chihiro se diferencia do grupo
Através de uma série de metáforas, A viagem de Chihiro faz duras críticas ao capitalismo, ao consumo exagerado e à ganância.
A primeira vez que a questão é apresentada é através da gula dos pais, que diante da fartura comem compulsivamente e acabam se transformando em porcos. Mesmo diante de tanta comida, Chihiro, por sua vez, não se deixa seduzir pela farta mesa e fica atrás sem tocar em nada. É a sua recusa diante do banquete que garante que ela não seja transformada em porcos como os pais.
Por serem gulosos e quererem comer tudo, os pais da menina são imediatamente punidos.
Em outra passagem do filme, a crítica à sociedade de consumo aparece de forma mais clara. Yubaba, a feiticeira, é caracterizada por explorar os seus trabalhadores, humilhando-os e fazendo-os trabalharem à exaustão. Eles não têm identidade, estão ali apenas para servirem e para darem mais lucro a quem manda.
Podemos ler também uma severa crítica ao consumismo desenfreado quando relembramos a acumulação do espírito fedorento: cada vez maior, ele cresce a partir dos restos, daquilo que jogam fora. O seu corpo é composto de eletrodomésticos velhos, lixo, esgoto, e até mesmo de uma bicicleta.
Chihiro se diferencia daqueles que estão ao seu redor numa série de passagens e se mostra não corrompida pela coletividade. Ela é, por exemplo, a única criatura que diz que não quer ouro quando lhe é oferecido. Chihiro diz que não precisa de ouro quando o Sem Rosto lhe oferece muitas pedrinhas. Ao contrário dos colegas que faziam tudo para ter um pedaço de ouro, Chihiro não via qualquer benefício em ter uma e só escapar sair dali o mais rapidamente possível para salvar o seu amigo.
O Sem Rosto faz referência ao nosso comportamento camaleônico
O Sem Rosto é um ser que tem o dom de se transformar numa criatura semelhante aquelas que interagem com ele. Ele é uma tela em branco: um sujeito basicamente sem identidade, sem voz, sem face, sem qualquer tipo de personalidade atribuída. Ele se comporta conforme é tratado: como Chihiro foi gentil e delicada, ele também foi gentil e delicado. Mas quando esteve perto de pessoas gananciosas, o Sem Rosto também se tornou ganancioso.
A sua principal característica é a capacidade de se metamorfosear, de se transformar em monstro ou numa criatura inofensiva capaz de ajudar a avó a tear. Carente e solitário, ele anda atrás das criaturas porque precisa delas.
Muitos apontam que o Sem Rosto tem o comportamento de uma criança, que absorve tudo o que lhe dão.
Outra interpretação possível é que o Sem Rosto seja como todos nós, que temos um comportamento camaleônico dependendo do lugar onde estamos. Ele seria a personificação dessa nossa característica de absorver o que está ao redor.
Crítica a poluição feita pelo homem
A viagem de Chihiro também não poupa críticas ao comportamento do homem, que tem destruído a natureza com o seu consumo desenfreado.
O monstro personifica a poluição e é composto de lixo humano podendo ser interpretado como uma reação da natureza. Durante o banho de banheira, ele deita fora violentamente tudo aquilo que os homens acumularam: bicicleta, eletrodomésticos, lixo.
O amontoado uniforme jorra com força e potência que deixa os que estão à volta em choque. Só Chihiro, aliás, é que tem a coragem de estar no banho com ele e é capaz de ajudá-lo quando percebe que há um espinho preso. O espinho, afinal, não era um espinho, e sim um pedaço de bicicleta. Ao puxá-la, todo o lixo que compunha o monstro veio atrás provando que a criatura nojenta era, no fim das contas, apenas o resultado do que jogamos fora.
O bebê que chora sem motivo e é criado numa redoma de vidro
Bebê: Vieste cá para me contagiar. Há bactérias más lá fora!
Chihiro: Sou humana! Talvez nunca tenhas visto nenhuma!
Bebê: Vais adoecer lá fora! Fica aqui e brinca comigoChihiro: Estás doente?
Bebê: Estou aqui porque adoeceria lá fora.
Chihiro: É ficar aqui que te vai fazer adoecer!
O bebê que chora sem nenhuma razão é cuidado pela feiticeira de forma extremamente protetora e através das poucas cenas onde Chihiro interage com ele percebemos a sua maturidade ao conseguir identificar os problemas dessa criação.
O bebê sem nome é mimado, exige que brinquem com ele na hora que ele quer e demanda atenção integral. Fechado em casa, ele não tem interações com ninguém além da feiticeira.
É Chihiro, prestes a entrar na pré-adolescência, que consegue se comunicar com ele e verbalizar que é preciso que o bebê conheça o lado de fora.
A fala da menina prova que é preciso arriscar e experimentar o mundo que não conhecemos, demonstrando a sua maturidade e a vontade de não só descobrir o novo como de motivar os que estão ao seu redor a fazerem o mesmo.
A criação da feiticeira, por mais que num primeiro momento pareça proteger o bebê, na verdade limita a sua existência.
O choque de culturas entre o ocidental e o oriental
De uma forma sutil, A viagem de Chihiro também levanta a questão entre o conflito de culturas ocidental e oriental.
Ainda nas primeiras cenas, logo ao descer do carro, Chihiro observa uma série de estátuas de pedra e elementos ligados à cultura japonesa que estão degradados, cobertos de musgo, escondidos no meio da paisagem. A cultura nacional, nativa, parece ter sido esquecida.
É dessa forma bastante discreta que Miyazaki toca na questão da cultura local.
Através da sua própria obra, o cineasta procura resgatar os elementos da cultura regional trazendo para a cena, por exemplo, uma série de criaturas sobrenaturais do folclore japonês.
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