Nós (Us): explicação e análise do filme


Carolina Marcello
Carolina Marcello
Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes

Nós (Us, no original) é um filme norte-americano de terror, suspense e ficção científica, dirigido por Jordan Peele.

Adelaide (interpretada por Lupita Nyong'o) é uma mulher que guarda um segredo macabro sobre a infância. Anos mais tarde, quando regressa à praia de Santa Cruz com a família, ela é assombrada por recordações traumáticas.

Com o cair da noite, os seus pesadelos se tornam realidade, quando quatro figuras vestidas de vermelho aparecem subitamente na sua porta.

Atenção: a partir deste ponto, você vai encontrar spoilers!

Nós: final do filme explicado

Aquilo que chamou mais atenção do público no longa-metragem foi o seu final surpreendente e, sobretudo, os significados que ele carrega.

O enredo, cheio de símbolos e metáforas, permite que o espectador crie as suas próprias teorias sobre o filme, que podem gerar várias interpretações possíveis. Assim, não nos propomos a desvendar totalmente o significado da obra, mas sim a apresentar alguns caminhos relevantes para a sua compreensão.

A troca de lugares

As duas mulheres frente a frente

Vamos começar resumindo a dualidade e o conflito que existe entre Red e Adelaide, as duas protagonistas da narrativa. Enquanto a primeira lidera a rebelião dos clones que viviam nos esgotos da cidade, a segunda luta até ao final para proteger a família da violência dos duplos.

Embora possamos compreender que estes indivíduos enlouqueceram, depois da experiência ter sido abandonada, e procurem a sua vingança, tendemos a torcer pelos Wilson durante toda a perseguição. Assim, facilmente Adelaide se torna a heroína da história enquanto Red ocupa o lugar de vilã.

O final da história, no entanto, vem mudar tudo. É aí que descobrimos que, quando se encontraram na casa de espelhos pela primeira vez, as garotas trocaram de lugar.

Adelaide na casa de espelhos.

Red é, então, a verdadeira Adelaide e as suas dificuldades na fala surgiram quando o clone a asfixiou e assumiu a sua identidade.

Deste jeito, nas cenas finais, Adelaide se torna a vilã do enredo: mesmo sendo uma criança, ela era esperta e maliciosa. Por isso, encarou o momento do encontro como a única oportunidade de escapar e sacrificou outra vida para salvar a sua.

Adelaide lembrava do que aconteceu?

Um dos aspetos mais interessantes de Nós é o modo como o diretor brinca com a ideia de coincidência e vai espalhando incontáveis pistas e indícios para este twist final ao longo da narrativa.

Neste sentido, rever o longa quando já sabemos o seu desenlace se torna uma espécie de jogo surpreendente e delicioso, já que o próprio Jordan Peele afirmou que nada está lá por acaso.

Embora a recordação só apareça nos momentos finais, enquanto a protagonista está dirigindo com o filho, podemos depreender que sempre esteve presente para ela.

Cena final do filme Nós - sorriso de Adelaide

Isso se torna notório, por exemplo, pelo sorriso da menina em várias lembranças, que é reproduzido na sequência final.

Também existem outros sinais, como o fato da mulher saber exatamente para onde se dirigir quando foi buscar o filho que tinha sido sequestrado por Red ou o modo como afirma para filha que ela seria capaz de qualquer coisa, se quisesse mesmo.

Contudo, o momento em que a crueldade da mulher se torna mais evidente é quando ela ri e grita, depois de assassinar a rival, roubando um colar do seu pescoço. Jason, que estava escondido no local, assiste à cena inteira, sem que ela perceba. O modo desconfiado e apreensivo como o menino olha para mãe nos leva a questionar se ele terá percebido a verdade.

Uma reflexão profunda sobre o medo

Enquanto filme de terror e suspense, Nós se serve da impressão de ameaça constante, a certeza de chegará alguma coisa que não sabemos de onde vem. A narrativa apela ao nosso instinto de proteger aquilo que é nosso e ao medo do desconhecido ou daquilo que não compreendemos.

Adelaide protegendo os filhos

Trata-se de um retrato desse estado de alerta contemporâneo e a necessidade de encarar a todos como potenciais inimigos, para que não venham tomar aquilo que é nosso. No entanto, é esse mesmo sentimento que pode trazer à superfície o pior de nós mesmos.

Nos primeiros minutos do filme, durante o café da manhã, o pequeno Jason tem uma fala extremamente sábia que parece reforçar esta interpretação:

Quando você aponta um dedo pra alguém, tem três dedos apontados pra você.

Desta forma, podemos afirmar que uma das mensagens que Peele quer transmitir ao seu público é que nem sempre somos os "bonzinhos" da história. Pelo contrário, todos podemos ser bons ou maus, e muitas vezes ser ambas as coisas.

Adelaide desce ao subsolo

A própria casa de espelhos onde os caminhos das meninas se cruzam parece ser uma referência às diferentes facetas que podemos revelar, dependendo das circunstâncias em que nos encontramos.

É interessante observar a facilidade com que Adelaide e a sua família se adaptam à violência e se tornam assassinos eficientes para sobreviver.

Depois do lançamento de Nós, o diretor prestou declarações que ajudam a entender a sua visão para o filme:

Estamos num momento em que tememos o outro, seja o invasor misterioso que pensamos que virá e nos matará e tomará nossos empregos, ou a facção que não vive perto de nós, que votou de forma diferente da nossa. O nosso objetivo é apontar o dedo. E eu queria sugerir que talvez o monstro que realmente precisamos encarar tenha nosso rosto. Talvez o mal sejamos nós.

Olhar crítico e comentário social

Como confirmamos no trecho acima e vamos percebendo ao longo de todo o enredo, Nós também se configura como um retrato metafórico dos Estados Unidos da América e suas desigualdades.

Isso se torna mais visível, por exemplo, quando os Wilson questionam a identidade dos duplos e Red apenas responde: "Somos americanos". Deste modo, muita gente encara o filme como uma crítica ao sistema capitalista ou, na linha de Corra!, uma reflexão sobre o racismo e a segregação dos afro-americanos.

Outra família aparece na porta da casa.

Frutos de uma experiência bizarra que visava o controle da população, os duplos também eram seres humanos, mas tinham sido condenados a uma vida de exclusão e miséria. Mais do que vingança, eles se organizaram para conquistar aquilo que sempre deveria ter sido deles por direito.

O filme pode, então, ser lido através deste viés social e interpretado como uma chamada de atenção para conceitos como a marginalização e o privilégio. A este propósito, Jordan Peele também afirmou:

Para termos o nosso privilégio, alguém sofre. (....) Aqueles que sofrem e aqueles que prosperam são duas faces da mesma moeda. Você nunca pode esquecer isso. Precisamos lutar pelos menos privilegiados.

Análise do filme Nós: temas e simbologias

Depois do sucesso absoluto de Corra! (2017), o Jordan Peele regressou com mais um longa-metragem arrepiante e repleto de críticas ao mundo contemporâneo.

Um filme bastante atual, Nós está repleto de referências à cultura pop dos anos 80 e 90, por exemplo, a blusa do álbum Thriller, de Michael Jackson, que Adelaide vestia na noite fatídica.

Ele também se utiliza de algumas imagens que já estão presentes no nosso imaginário coletivo, como os zumbis, que parecem ser referenciados no comportamento errático e violento dos duplos. Neste longa-metragem sobre o medo, o diretor também parece se servir de algumas lendas urbanas e teorias da conspiração já conhecidas pelo público.

Corredores e tuneis subterrâneos

Nos primeiros segundos da narrativa, é anunciado que os Estados Unidos da América são atravessados por túneis abandonados, que ninguém sabe ao certo para que servem. Pouco depois, Zora, a filha do casal, fala sobre a hipótese do governo colocar algo na água pra controlar as mentes da população.

Todos os questionamentos e assuntos que são convocados na história não tiram o foco da atmosfera de terror: são vários os sustos e as cenas que beiram o gore. Mesmo assim, também fica evidente o humor sombrio do diretor, com momentos que rendem boas gargalhadas.

Os duplos que vivem no subsolo

O fio condutor da trama é a existência de um mundo subterrâneo onde permanece um duplo de cada indivíduo, que repete os seus atos porque não tem escolha. Tratam-se, assim, de duas versões diferentes da mesma vida.

Família dos duplos.

Era uma vez uma garota e a garota tinha uma sombra. As duas estavam conectadas, unidas.

Embora também fossem seres humanos, os duplos tinham nascido desprovidos de direitos e eram forçados a ficar na escuridão, enquanto os outros viviam na luz. Assim, estes indivíduos foram vítimas da injustiça de um sistema perverso e passaram a vida presos sem ter cometido crime nenhum.

Além das leituras raciais e de classe, podemos ir mais longe e propor que o filme inclui também uma reflexão acerca do sistema carcerário norte-americano. Isso parece ser sugerido pelos macacões avermelhados que todos vestem, lembrando uniformes prisionais.

Nós: coelhos nas jaulas

Eles apenas se alimentam de coelhos crus, animais que vivem trancados ali e só comem, se reproduzem e morrem. Esta parece ser uma metáfora para a própria existência dos duplos que, assim como acontece com os coelhos, estavam sendo usados para testes e experiências científicas.

O diretor declarou que o símbolo se repete tanto por causa da sua dualidade: coelhos são fofos, mas podem ser perigosos. Já as tesouras, suas armas favoritas, simbolizam duas partes que se completam, ou seja, "dois corpos que dividem uma alma".

Red, a líder dos duplos

A chegada de Red simbolizou, na prática, o ponto de viragem no destino dos duplos. Como se tivessem sido guiadas uma até à outra, os papéis das garotas se inverteram e a verdadeira Adelaide se viu condenada a uma vida na sombra.

Enquanto todos que a rodeavam tinham enlouquecido, e seguiam sem propósito, a menina mantinha uma visão diferente sobre o que estava vivendo, já que sabia como era estar na superfície.

Lá, tinha aprendido a dançar e, quando performou pela primeira vez na frente dos duplos, eles perceberam que havia algo especial nela.

A dança de Red se torna um símbolo de liberdade e expressividade, sendo apelidada de "milagre" pela personagem, porque lhe mostrou o seu propósito. O ato quebra o clima de letargia, lembrando que todos ali estão vivos e têm poder.

É deste modo que a suposta vilã vem comprometer aquele sistema: ela se torna líder e começa a despertar a consciência dos outros para a necessidade de se organizarem e planejarem a vingança.

A passagem bíblica e a sua mensagem

Existe uma passagem bíblica que se repete várias vezes ao longo do filme, surgindo sempre associada à casa de espelhos, o portal para o "lado de lá". No caminho para o local, Adelaide vê um homem segurando um cartaz que diz "Jeremias 11:11".

Anos mais tarde, Jason encontra a mesma inscrição quando se perde na praia. Ele fica pensando no homem que segura o cartaz na praia e faz um desenho dele. Na mesma noite, mostra para a mãe que são "11:11" no relógio.

Jeremias 11:11

Além de os números serem iguais e metaforizarem os duplos, a imagem também carrega uma mensagem escondida.

Os versos bíblicos mostram a reação de Deus depois de ser atraiçoado pelo povo de Israel, que passou a adorar falsas divindades:

Por isso, assim diz o Senhor: "Trarei sobre eles uma desgraça da qual não poderão escapar. Ainda que venham a clamar a mim, eu não os ouvirei".

Este detalhe traz ainda uma nova camada à interpretação do filme, que passa a conter uma mensagem religiosa também. A passagem pode ser lida como a existência de uma força superior que está desapontada com a raça humana e a sua sede de poder, e decide condená-la à desgraça.

A ideia é reforçada pelo discurso de Red, que acredita que foi escolhida por Deus para cumprir uma missão. Isso poderia explicar as inúmeras coincidências e os fatores que se alinham, ao longo da história, para que tudo possa acontecer.

O que simboliza o Hands Across America?

Nos primeiros segundos do filme, vemos um anúncio na TV de uma campanha humanitária chamada Hands Across America. Esta é uma das últimas imagens que Red vê na infância, antes de ser sequestrada pela sua dupla.

O evento existiu mesmo e aconteceu no dia 25 de maio de 1986, quando 6,5 milhões de norte-americanos deram as mãos e formaram uma corrente humana que atravessou vários estados do país.

Quadro negro

O objetivo da ação era chamar a atenção nacional para a pobreza e a fome, angariando fundos para ajudar a população carenciada.

O plano de Red é recriar o momento, criando uma linha infinita de duplos que atravessará o país. Nas cenas finais, enquanto Adelaide parte com o filho, vemos que as cidades estão desertas, mas existe uma enorme corrente humana de figuras vestidas de vermelho.

Como é referido por Gabriel, o marido de Adelaide, a atitude parece se tratar de uma espécie de protesto. É a própria líder dos duplos que explica, deixando claro que a vingança não é suficiente e precisam fazer uma declaração visível para o resto do mundo:

Agora é o nosso tempo!

Sobre a trilha sonora do filme

Nós também conta com uma seleção musical de excelência, passando dos estilos urbanos, como rap e hip hop, até à música clássica.

Em alguns momentos, as escolhas musicais provocam um contraste direto com as imagens que estamos assistindo, gerando um efeito cômico. Afinal, quem diria que um dia você ia assistir a um verdadeiro massacre ao som de Good Vibrations dos Beach Boys?

Confira tudo nessa playlist que nós preparamos para você e se divirta também:

Ficha técnica e cartaz do filme

Título

Us (original)
Nós (Brasil)
Ano da produção 2019
Dirigido por Jordan Peele
Lançamento 15 de Março de 2019
Duração 116 minutos
Classificação Não recomendado para menores de 16 anos
Gênero Terror
Suspense
País de origem Estados Unidos da América

Cartaz do filme Nós

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Carolina Marcello
Carolina Marcello
Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes e licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Apaixonada por leitura e escrita, produz conteúdos on-line desde 2017, sobre literatura, cultura e outros campos do saber.