Lenda do Boto (folclore brasileiro)

Carolina Marcello
Carolina Marcello
Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes
Tempo de leitura: 9 min.

A lenda do Boto é uma das mais célebres estórias do folclore nacional. O cetáceo, uma espécie de golfinho de águas doces que habita os rios da Amazônia, acabou se tornando o centro de uma narrativa muito popular no Brasil.

Boto-cor de rosa
Boto rosa no rio.

Hoje, faz parte do imaginário comum dos brasileiros: a personagem foi e continua sendo representada em textos, músicas, filmes, peças de teatro e novelas.

A lenda do Boto

Em algumas noites especiais, de lua cheia ou festa junina, o Boto sai do rio e se transforma em um homem sedutor e galante, todo vestido de branco.

Usa um chapéu para disfarçar a sua identidade: pelo nariz grande, continua lembrando o golfinho de água doce e, no topo da cabeça, tem um orifício por onde respira.

Novela A Força do Querer
Boto e Edinalva, novela A Força do Querer (2017).

Surpreendendo moças na beira do rio, ou dançando com elas durante os bailes, o Boto consegue seduzi-las com seu jeito doce e charmoso. Aí, decide leva-las para dentro da água, onde fazem amor.

Na manhã seguinte, regressa à sua forma normal e desaparece. As mulheres ficam apaixonadas pela figura misteriosa e muitas vezes engravidam, tendo de revelar ao mundo o seu encontro com o Boto.

O mito do Boto no folclore brasileiro

Assim como a própria identidade, a cultura tradicional brasileira se formou através do cruzamento de influências indígenas, africanas e portuguesas. O mito parece ter uma natureza híbrida, combinando elementos dos imaginários europeu e indígena.

Imagem de uma canoa no rio.
Amazônia: retrato de uma canoa no rio.

A história do Boto, que teve origem na região norte do país, na Amazônia, ilustra a proximidade do povo com as águas e o modo como ela se reproduz em suas vivências e crenças.

Encarado como amigo ou como predador, o cetáceo ganhou uma conotação mágica e passou a ser celebrado e temido em várias regiões do país. Atualmente, ainda é representado em rituais e danças folclóricas, em comemorações como a Festa do Sairé, em Alter do Chão, Pará.

festa do saire
Boto na Festa do Sairé.

Variações e curiosidades sobre a lenda

O contato entre as populações que estavam próximas conduziu a um processo de assimilação da lenda do Boto pela cultura regional brasileira.

Assim, a narrativa foi se transformando e assumindo contornos diferentes, dependendo da época e da região do país. Inicialmente, a história se passava em noites de lua cheia, quando o sedutor aparecia para as mulheres que se banhavam no rio ou passeavam nas margens.

Na versão mais conhecida atualmente, a entidade mágica se transforma em homem no período das festas juninas e aparece nos bailes, querendo dançar com a moça mais bonita. Em algumas variantes da história, ele também toca bandolim.

Luís da Câmara Cascudo, célebre historiador e antropólogo, resumiu assim a estória, na obra Dicionário do Folclore Brasileiro (1952):

O boto seduz as moças ribeirinhas aos principais afluentes do Rio Amazonas, e é o pai de todos os filhos de responsabilidade desconhecida. Nas primeiras horas da noite, transforma-se num bonito rapaz, alto, branco, forte, grande dançador e bebedor, e aparece nos bailes, namora, conversa, frequenta reuniões e comparece fielmente aos encontros femininos. Antes da madrugada, volta a ser boto.

Os relatos eram tão frequentes na tradição oral e escrita que virou costume, em certas regiões, os homens tirarem o chapéu e mostrarem o topo da cabeça quando chegavam nas festas.

Ilustração de Rodrigo Rosa
Ilustração de Rodrigo Rosa.

Antes desta versão popular, outras narrativas indígenas falavam de um ser aquático que assumia forma humana: Mira. A entidade era adorada pelos tapuias, índios que não falavam tupi, que acreditavam na sua proteção divina.

Os povos tupis do litoral também falavam de um homem marinho, o Ipupiara. Encarado como um aliado e protetor, o Boto era visto como um amigo, principalmente dos pescadores e das mulheres que resgatava das águas. Por isso, o consumo da sua carne passou a ser mal visto em várias comunidades.

O seu encantamento, no entanto, deixava sequelas na vida de quem o conhecia. Depois do encontro com o ser fantástico, as mulheres pareciam adoecer de paixão, entrando em um estado de melancolia. Magras e pálidas, muitas tinham que ser levadas ao curandeiro.

A lenda parece ser um paralelo masculino de Iara, a Mãe d'Água que atraia os humanos com a sua beleza e a sua voz. É interessante reparar que alguns relatos davam conta do Boto que também se transformava em mulher, mantendo relações com homens que passava a guardar.

Na melhor das hipóteses, o Boto começava a rondar a cabana e a canoa do seu amado. Na pior, o homem morria de exaustão logo depois do sexo.

Em 1864, na obra Um Naturalista no Rio Amazonas, o explorador inglês Henry Walter Bates narra uma versão semelhante, que aprendeu na Amazônia.

Muitas histórias misteriosas são referidas acerca do boto, como é chamado o golfinho maior do Amazonas. Uma delas era de que o boto tinha o hábito de assumir a forma de uma bela mulher, com os cabelos pendentes até os joelhos e, saindo à noite, a passear nas ruas de Ega, encaminhar os moços até ao rio.

Se algum era bastante afoito a segui-la até a praia, ela segurava a vítima pela cintura e a mergulhava nas ondas com um grito de triunfo.

Todas essas fábulas fizeram também com que as populações começassem a teme-lo, procurando formas de o afastar. Assim, nasceu o hábito de esfregar alho nas embarcações. No interior, existe a crença de que as mulheres não devem estar menstruadas nem vestir vermelho quando andam de barco, pois esses fatores atrairiam a criatura.

Os filhos do Boto

A crença em uma entidade mágica que aparecia para seduzir mulheres incautas sobreviveu e foi se transformando durante os tempos. No entanto, uma coisa permanece igual: a lenda é usada para explicar a gravidez de uma mulher solteira. O mito, muitas vezes, é uma forma de encobrir relações proibidas ou extraconjugais.

Por isso, há séculos que o Brasil tem crianças de pais desconhecidos que acreditam ser filhas do Boto. Em 1886, José Veríssimo representou a situação na obra Cenas da vida amazônica.

Rosinha desde esse tempo começou a emagrecer; de pálida que era tornou-se amarela; ficou feia. Tinha um ar triste de mulher desgraçada. Seu pai notou essa mudança e perguntou à mulher a causa dela. Foi o boto, respondeu D. Feliciana, sem dar outra explicação.

Outras interpretações da lenda

Por trás deste mito, existe um cruzamento entre magia e sexualidade. Além de promover a união entre a mulher e a natureza, a narrativa parece estar relacionada com o desejo feminino e a fantasia de um homem com poderes sobrenaturais, capaz de seduzir qualquer mortal.

Em contrapartida, alguns psicólogos e sociólogos apontam que, muitas vezes, as mulheres usam a lenda como forma de esconder episódios de violência ou incesto que geraram uma gravidez.

Representações contemporâneas do Boto

peça de teatro o boto - lendas amazonicas
O Boto - Lendas Amazônicas, fotografia de Fernando Sette Câmara.

Contada através das gerações, a lenda do Boto continua assumindo um papel de relevo na cultura brasileira. A personagem misteriosa tem sido representada através de diversas artes: literatura, teatro, música, cinema, entre outras.

Em 1987, Walter Lima Jr. dirigiu o filme Ele, o Boto, protagonizado por Carlos Alberto Riccelli.

O personagem também é o centro de um curta-metragem de animação dirigido por Humberto Avelar, parte do projeto Juro que vi, uma série de curtas sobre folclore brasileiro e proteção ambiental, de 2010.

Veja o curta na íntegra:

Em 2007, o mito também apareceu na minissérie Amazônia - De Galvez a Chico Mendes, onde Delzuite (Giovanna Antonelli) vive um relacionamento proibido e engravida. Embora estivesse noiva de outro homem, fica grávida de Tavinho, o filho de um coronel, e coloca a culpa no Boto.

Giovana
Amazônia - De Galvez a Chico Mendes (2007).

Recentemente, na novela A Força do Querer (2017), conhecemos Rita, uma jovem de Parazinho que acreditava ser uma sereia. A moça achava que a sua proximidade com a água e os seus poderes de sedução eram herança de família: era filha do Boto.

A Força do Querer (2017).
A Força do Querer (2017).

A trilha sonora da novela inclui o tema O Boto Namorador de Dona Onete, uma cantora, compositora e poetisa paraense. A canção, como o próprio título indica, faz menção ao caráter conquistador do Boto, uma espécie de Don Juan brasileiro.

Contam que um moço bonito
Saltava pra namorar
Contam que um moço bonito
Saltava para dançar

Todo vestido de branco
Pra dançar com a cabocla Sinhá
Todo vestido de branco
Pra dançar com a cabocla Iaiá
Todo vestido de branco
Pra dançar com a cabocla Mariá

Sobre o Boto-cor-de-rosa

Boto Rosa
O boto rosa ou Inia geoffrensis.

Com o nome científico Inia geoffrensis, o boto ou uiara é um golfinho fluvial que habita nos rios Amazonas e Solimões. A coloração destes mamíferos pode variar, sendo que os adultos, principalmente os machos, apresentam uma tonalidade rosada. O nome "uiara", derivado do tupi "ï'yara" significa "senhora da água".

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Carolina Marcello
Carolina Marcello
Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes e licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Apaixonada por leitura e escrita, produz conteúdos on-line desde 2017, sobre literatura, cultura e outros campos do saber.