As 10 músicas mais importantes da Bossa Nova (com análise)

Rebeca Fuks
Rebeca Fuks
Doutora em Estudos da Cultura
Tempo de leitura: 18 min.

O movimento Bossa Nova, responsável por divulgar a música brasileira no exterior, foi um desdobramento do processo de industrialização vivido pelo nosso país durante as décadas de 1950 e 1960.

Cansados da velha música, os jovens compositores buscavam criar composições inovadoras, mais compatíveis com os novos tempos.

Relembre agora as dez músicas que marcaram aquela geração.

1. Garota de Ipanema

Conhecida como um hino da Bossa Nova, Garota de Ipanema foi uma composição criada pelos parceiros Vinicius de Moraes (1913-1980) e Tom Jobim (1927-1994) em homenagem à Helô Pinheiro.

A canção que faz um elogio à mulher brasileira foi adaptada para o inglês e ficou conhecida na voz de Astrud Gilberto.

Olha que coisa mais linda
Mais cheia de graça
É ela, menina
Que vem e que passa
Num doce balanço
A caminho do mar

Moça do corpo dourado
Do sol de Ipanema
O seu balançado é mais que um poema
É a coisa mais linda que eu já vi passar

Ah, por que estou tão sozinho?
Ah, por que tudo é tão triste?
Ah, a beleza que existe
A beleza que não é só minha
Que também passa sozinha

Ah, se ela soubesse
Que quando ela passa
O mundo inteirinho se enche de graça
E fica mais lindo
Por causa do amor

A protagonista da letra é uma bela moça que passa alheia ao olhar dos compositores. Ela parece não ter consciência do encanto que carrega e da sua capacidade de enfeitiçar os homens à sua volta.

Desatenta em relação à tudo e à todos, a jovem apenas passa a caminho do mar. A sua presença hipnotizante faz com que o eu-lírico veja tudo ao redor de maneira diferente.

Conheça uma análise aprofundada da Música Garota de Ipanema, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes.

2. Samba do Avião

Composta por Antônio Carlos Jobim, em 1962, a letra aborda a ótica de um carioca apaixonado pela sua cidade que a vê de cima.

Minha alma canta
Vejo o Rio de Janeiro
Estou morrendo de saudade
Rio teu mar, praias sem fim
Rio você foi feito pra mim

Cristo Redentor
Braços abertos sobre a Guanabara

Este samba é só porque
Rio eu gosto de você
A morena vai sambar
Seu corpo todo balançar

Rio de sol, de céu, de mar
Dentro de mais uns minutos
Estaremos no Galeão

Este samba é só porque
Rio eu gosto de você
A morena vai sambar
Seu corpo todo balançar

Aperte o cinto, vamos chegar
Água brilhando, olha a pista chegando
E vamos nós aterrar

O nome Samba do Avião faz uma referência ao local onde se encontra o eu-lírico, é a partir de cima que ele consegue observar as belezas da cidade que tanto ama.

Pela letra, é possível perceber que o compositor carioca está regressando de longe e sente saudades de casa.

Além de mencionar alguns pontos turísticos (o Cristo Redentor, a Baía de Guanabara), o sujeito poético faz referência ao clima, às praias, à música, às mulheres e a atmosfera da cidade - em resumo, ele menciona tudo aquilo que sente falta.

3. Desafinado

Composta por Antônio Carlos Jobim e Newton Mendonça, a canção ficou famosa na voz de João Gilberto, que, não por acaso, era acusado de ser um intérprete desafinado.

Se você disser que eu desafino amor
Saiba que isto em mim provoca imensa dor
Só privilegiados tem o ouvido igual ao seu
Eu possuo apenas o que deus me deu

Se você insiste em classificar
Meu comportamento de anti-musical
Eu mesmo mentindo devo argumentar
Que isto é Bossa Nova, isto é muito natural

O que você não sabe nem sequer pressente
É que os desafinados também tem um coração

Fotografei você na minha Rolley-Flex
Revelou-se a sua enorme ingratidão

Só não poderá falar assim do meu amor
Ele é o maior que você pode encontrar
Você com a sua música esqueceu o principal
Que no peito dos desafinados
No fundo do peito

Bate calado, que no peito dos desafinados
Também bate um coração.

Na letra o eu-lírico se dirige à uma amada que o acusa de desafinar. Ele argumenta que o ouvido dela é que é extremamente sensível e retruca que esse gesto, na Bossa Nova, é muito natural. É curioso como de dentro da Bossa Nova os compositores se referem à ela e incluem o movimento na letra.

Outra observação peculiar é o fato da máquina fotográfica Rolley-Flex, em voga na época, comparecer na letra, dando um toque contemporâneo à composição.

4. Insensatez

Composta pelos amigos Vinicius de Moraes e Tom Jobim no ano de 1961, a canção Insensatez carrega um ar mais melancólico e arrependido.

A música, que se tornou um dos ícones da Bossa Nova, chegou a ser gravada em inglês (How Insensitive) por grandes nomes como Ella Fitzgerald, Frank Sinatra e Iggy Pop.

A insensatez que você fez
Coração mais sem cuidado
Fez chorar de dor
O seu amor
Um amor tão delicado
Ah, porque você foi fraco assim
Assim tão desalmado
Ah, meu coração quem nunca amou
Não merece ser amado

Vai meu coração ouve a razão
Usa só sinceridade
Quem semeia vento, diz a razão
Colhe sempre tempestade
Vai, meu coração pede perdão
Perdão apaixonado
Vai porque quem não
Pede perdão
Não é nunca perdoado

A desilusão amorosa é o mote que move a escrita desse clássico da Bossa Nova. O eu-lírico, claramente em desequilíbrio por conta de um desamor, narra as dores advindas do seu coração partido.

Vinicius propaga a ideia de que devemos semear coisas boas, caso contrário as consequências chegam depressa. E foi o que aconteceu ao sujeito poético: ele parece ter falhado com a amada em algum momento e, ao longo da letra, é incentivado a pedir desculpas com a esperança de que tudo volte a ser como era antes.

5. Wave

Foi de uma parceria entre Tom Jobim (música) e Vinicius de Moraes (letra), que nasceu Wave, a primeira faixa do LP lançado em em 1967. A dupla teve ainda a ajuda do arranjador Claus Ogerman para dar vida a essa obra-prima.

Vou te contar,
Os olhos já não podem ver
Coisas que só o coração pode entender.
Fundamental é mesmo o amor,
É impossível ser feliz sozinho.

O resto é mar,
É tudo que eu não sei contar.
São coisas lindas
Que eu tenho pra te dar.
Vem de mansinho a brisa e me diz:
É impossível ser feliz sozinho.

Da primeira vez era a cidade,
Da segunda, o cais e a eternidade.

Agora eu já sei
Da onda que se ergueu no mar,
E das estrelas que esquecemos de contar.
O amor se deixa surpreender,
Enquanto a noite vem nos envolver.

Vou te contar,
Os olhos já não podem ver
Coisas que só o coração pode entender.
Fundamental é mesmo o amor,
É impossível ser feliz sozinho.

O resto é mar,
É tudo que eu não sei contar.
São coisas lindas
Que eu tenho pra te dar.
Vem de mansinho a brisa e me diz:
É impossível ser feliz sozinho.

Da primeira vez era a cidade.
Da segunda, o cais e a eternidade.

Agora eu já sei
Da onda que se ergueu no mar,
E das estrelas que esquecemos de contar.
O amor se deixa surpreender,
Enquanto a noite vem nos envolver.

Vou te contar...

O título da música (Wave, em português "onda") não é gratuito: para além de narrar a paisagem da praia, a canção tem mesmo a cadência das ondas e faz sucessivas investidas com um ritmo constante.

A onda também diz respeito ao sentimento amoroso, que funciona através de diversas fases (o sentimento muitas vezes costuma ser identificado a partir de um movimento cíclico de aproximações e afastamentos).

Wave é uma canção típica da Bossa Nova: trata do enamoramento, da beleza de se sentir apaixonado, da relação de proximidade com a amada e da paisagem praiana com um ar leve que serve como pano de fundo.

É interessante observar que a frase "É impossível ser feliz sozinho", que pertence à letra da música, transcendeu o movimento da Bossa Nova e o contexto da canção e entrou para o imaginário coletivo.

6. Pela Luz Dos Olhos Teus

Também com letra de Vinicius de Moraes e música de Tom Jobim, a curiosa canção que não apresenta refrão ficou conhecida pelas vozes de Miúcha e Tom Jobim, que cantavam em dupla interpretando cada um uma parte da música.

Quando a luz dos olhos meus
E a luz dos olhos teus
Resolvem se encontrar
Ai, que bom que isso é, meu Deus
Que frio que me dá
O encontro desse olhar

Mas se a luz dos olhos teus
Resiste aos olhos meus
Só pra me provocar
Meu amor, juro por Deus
Me sinto incendiar

Meu amor, juro por Deus
Que a luz dos olhos meus
Já não pode esperar
Quero a luz dos olhos meus
Na luz dos olhos teus
Sem mais lararará
Pela luz dos olhos teus
Eu acho, meu amor
E só se pode achar
Que a luz dos olhos meus
Precisa se casar

Existe sensação melhor do que estar apaixonado? Pela Luz Dos Olhos Teus pretende fazer um registro desse momento precioso e transpor em palavras esse sentimento de enamoramento.

Para dar conta dos dois lados de uma relação de afeto, a música foi interpretada por um homem e uma mulher (no caso Miúcha e Tom). Ao longo da letra assistimos aos vários contornos que essa relação amorosa pode ganhar: os apaixonados resistirão? Ficarão juntos para sempre?

Vale sublinhar que a canção trata não só propriamente da atração física, mas dos desdobramentos físicos que são sentidos nos corpos dos apaixonados.

7. Ela É Carioca

Um elogio à mulher carioca, esse poderia ser um resumo da canção feita em parceria entre Tom Jobim e Vinicius de Moraes.

Ela é carioca
Ela é carioca

Basta o jeitinho dela andar
Nem ninguém tem carinho assim para dar
Eu vejo na cor dos seus olhos
As noites do Rio ao luar
Vejo a mesma luz
Vejo o mesmo céu
Vejo o mesmo mar
Ela é meu amor, só me vê a mim
A mim que vivi para encontrar
Na luz do seu olhar
A paz que sonhei
Só sei que sou louco por ela
E pra mim ela é linda demais

E além do mais
Ela é carioca
Ela é carioca

O Rio de Janeiro foi o berço da Bossa Nova e nada mais natural de que fazer da mulher carioca um ícone dessa geração (e consequentemente dessa canção). Além de ser um elogio à jovem, a letra também convida o ouvinte a experimentar um olhar generoso sobre a cidade.

Tudo é idealizado na mulher da letra concebida por Vinicius: o olhar, a personalidade carinhosa, o caminhar, a beleza ímpar. E o fato de ter nascido no Rio de Janeiro parece ser um plus ainda maior para essa figura que hipnotiza o sujeito poético. A moça não nomeada arrebata o coração do eu-lírico a ponto de fazer com que ele crie uma composição só para ela.

8. Chega de Saudade

A canção composta em 1956 fruto da união de Vinicius de Moraes e Tom Jobim se tornou um dos maiores clássicos da Bossa Nova.

Chega de Saudade foi das primeiras músicas do movimento, tendo surgido no álbum Canção do Amor Demais (1958), de Elizeth Cardoso. O fato da música ter ficado consagrada também se deve ao fato de João Gilberto tê-la regravado no seu primeiro disco solo, batizado também de Chega de Saudade.

Vai minha tristeza
E diz a ela que sem ela não pode ser
Diz-lhe numa prece
Que ela regresse
Porque eu não posso mais sofrer

Chega de saudade
A realidade é que sem ela
Não há paz
Não há beleza
É só tristeza e a melancolia
Que não sai de mim
Não sai de mim
Não sai

Mas
Se ela voltar
Se ela voltar
Que coisa linda!
Que coisa louca!
Pois há menos peixinhos a nadar no mar
Do que os beijinhos
Que eu darei na sua boca

Dentro dos meus braços, os abraços
Hão de ser milhões de abraços
Apertado assim, colado assim, calado assim,
Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim

Que é pra acabar com esse negócio
De viver longe mim

Não quero mais esse negócio
De você viver assim

Vamos deixar esse negócio
De você viver sem mim

Não quero mais esse negócio
De viver longe de mim.

Com uma estrutura de choro, Chega de Saudade carrega como título um dos seus versos mais poderosos. A canção que se tornou um símbolo da Bossa Nova fala de um desencontro amoroso e das consequências sentidas pelo sujeito poético.

Aqui o eu-lírico se lamenta por sentir saudades da amada e pede que ela regresse para que o seu sofrimento acabe. A mulher é vista, portanto, como a única fonte de alegria e a sua ausência faz com que o sujeito caia numa tristeza sem fim.

9. Águas de Março

Águas de Março foi composta por Tom Jobim em 1972 e ficou famosa em gravação feita pelo compositor com a cantora Elis Regina no LP Elis & Tom (1974).

É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é o laço, é o anzol
É peroba do campo, é o nó da madeira
Caingá candeia, é o Matita-Pereira

É madeira de vento, tombo da ribanceira
É o mistério profundo, é o queira ou não queira
É o vento ventando, é o fim da ladeira
É a viga, é o vão, festa da cumeeira
É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira
É o pé, é o chão, é a marcha estradeira
Passarinho na mão, pedra de atiradeira

Com uma letra enorme e elaborada (o que você lê acima é apenas o trecho inicial da canção), é uma surpresa que uma canção difícil de ser cantada tenha caído rapidamente no gosto popular.

E não se tratou de um sucesso passageiro: Águas de Março permaneceu no imaginário coletivo tendo sido eleita em 2001, em pesquisa realizada pela Folha de SP, a melhor canção brasileira de todos os tempos.

A letra - palavrosa - elenca uma série de situações em uma sequência capaz de deixar o cantor (e o ouvinte) sem fôlego.

O criador contou em entrevista que a canção surgiu quando estava com a família no interior do Rio de Janeiro. Tom estava cansado depois de um dia de trabalho, ilhado na sua pequena casa de férias, enquanto construía uma outra casa maior, no alto de um morro.

A súbita inspiração fez com que o compositor rabiscasse a extensa letra num papel de pão. Profundamente imagética, Águas de Março faz, através de uma enumeração caótica, não só a narração de um período do ano como também pinta um cenário em construção. Aqui são misturados elementos concretos e abstratos que ajudam a compor a cena.

10. Samba de Uma Nota Só

Samba de uma nota só é fruto de uma parceria entre Tom Jobim (música) e Newton Mendonça (letra). A composição teve também uma versão em inglês chamada One Note Samba.

Eis aqui este sambinha
Feito numa nota só,
Outras notas vão entrar
Mas a base é uma só.

Essa outra é consequência
Do que acabo de dizer
Como sou a consequência inevitável de você.

Quanta gente existe por aí
Que fala tanto e não diz nada,
Ou quase nada.
Já me utilizei de toda escala
E no final não sobrou nada,
Não deu em nada

Com uma letra longa (o que você lê acima é apenas um trecho), é curioso observar que a composição trata inicialmente sobre o seu próprio processo de criação.

Trata-se, portanto, de uma canção metalinguística, que se volta para o seu próprio interior falando sobre a circunstância da sua composição.

A letra tece um paralelo entre a criação musical e o encontro amoroso. Assim como é difícil encontrar a nota e a composição correta, o eu-lírico sugere que é inevitável voltar a elogiar a amada.

Um pouco sobre a Bossa Nova

As primeiras criações da Bossa Nova aconteceram durante a década de 50, inicialmente nas casas dos compositores ou em bares.

Tratou-se de um período histórico marcado por uma ebulição cultural e uma transformação social, os jovens compositores desejavam alcançar uma nova maneira de fazer música, mais alinhada com o contexto contemporâneo.

Dois discos marcaram o início da Bossa Nova. O primeiro deles foi Canção do Amor Demais (1958), com Elizeth Cardoso cantando Tom Jobim e Vinicius de Moraes (e João Gilberto no violão). O segundo foi Chega de Saudade (1959) de João Gilberto, com música de Tom e Vinicius.

Entre os principais personagens desse movimento estão:

  • Antonio Carlos Jobim (1927-1994)
  • Vinicius de Moraes (1913-1980)
  • João Gilberto (1931)
  • Carlos Lyra (1933)
  • Roberto Menescal (1937)
  • Nara Leão (1942-1989)
  • Ronaldo Bôscoli (1928-1994)
  • Baden Powell (1937-2000)

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Rebeca Fuks
Rebeca Fuks
Formada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2010), mestre em Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2013) e doutora em Estudos de Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e pela Universidade Católica Portuguesa de Lisboa (2018).