Filme Infiltrado na Klan, de Spike Lee


Carolina Marcello
Carolina Marcello
Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes

Infiltrado na Klan é uma comédia dramática lançada em 2018, escrita e dirigida por Spike Lee. Baseado no livro autobiográfico Black Klansman, de Ron Stallworth, o filme conta a história do policial negro que conseguiu se infiltrar na Ku Klux Klan durante os anos 70.

Atenção: este artigo contém spoilers!

Resumo

O filme acompanha a jornada de Ron Stallworth, um jovem que entra para as forças policiais do Colorado nos anos 70, durante um período de extrema discriminação racial nos Estados Unidos da América.

Embora seja alvo de preconceito no trabalho, a carreira de Ron avança quando ele se torna detetive e tem que se infiltrar em um encontro de ativismo estudantil negro. Lá, escuta o discurso de um antigo membro dos Black Panthers sobre as injustiças sociais que enfrentam e conhece Patrice, líder do movimento dos estudantes.

Ron encontra um anúncio no jornal para se juntar ao Ku Klux Klan, o grupo de supremacia branca que aterrorizou o país. Através do telefone, contacta um dos membros e se inscreve, dando o nome verdadeiro por distração.

Começa a namorar com Patrice, de quem esconde que trabalha na polícia. Continua a sua comunicação com a Klan, através de cartas e ligações e fica amigo do líder do grupo, David Duke, com quem conversa regularmente. Nos encontros presenciais, quem comparece é Flip, parceiro da polícia, que é branco e judeu.

Apesar do clima de tensão na Klan e de todos os comentários antissemitas que Flip tem que escutar, "Ron" é aceito no grupo e acaba sendo proposto para liderar as ações no Colorado.

Durante a sua missão, Ron e Flip conseguem evitar os ataques terroristas, impedindo que queimassem cruzes e provocassem uma explosão durante um protesto antirracista. Apesar disso, a investigação foi interrompida e Ron foi obrigado a destruir as provas que recolheu.

Personagens principais e elenco

Ron Stallworth (John David Washington)

Ron

Ron é um policial que enfrenta episódios de racismo dentro e fora do seu trabalho. Quando começa a ficar mais ligado às lutas pelos direitos civis, resolve se infiltrar na Ku Kux Klan e ajudar a combater o terrorismo a partir de dentro do grupo. Embora reconheça o abuso de poder dos policiais, tenta usar a sua profissão para travar os crimes de ódio racial no Colorado.

Flip Zimmerman (Adam Driver)

Flip

Flip é o agente que se faz passar por Ron nas reuniões da Klan. Embora consiga se infiltrar, vive vários episódios tensos onde os outros membros o abordam de forma agressiva, porque desconfiam que ele é judeu. Flip é obrigado a negar a sua identidade durante quase toda a narrativa, para conservar a sua segurança.

Patrice Dumas (Laura Harrier)

Patrice

Patrice é uma jovem universitária que se dedica de corpo e alma ao movimento estudantil negro e à luta pela igualdade. Por organizar palestras e encontros com figuras políticas de renome, entre os quais se destacam antigos membros dos Black Panthers, se torna alvo dos ataques da Klan.

David Duke (Topher Grace)

David Duke

David Duke é um político norte-americano, líder da Ku Klux Klan. Conversa diversas vezes com Ron Stallworth pelo telefone e acredita que são aliados, enquanto tenta propagar o seu discurso de ódio.

No final, descobre que o homem com quem gostava de conversar e em quem confiou para um posto de liderança é negro e estava infiltrado no grupo.

Felix Kendrickson (Jasper Pääkkönen)

Felix

Felix é membro da Klan e aparenta ser o mais perigoso e descontrolado do grupo. Logo que conhece Flip (fazendo se passar por Ron) suspeita da sua ascendência judaica e desenvolve um comportamento cada vez mais paranoico, tentando sujeitar o infiltrado a um detetor de mentiras.

É o mandante da explosão no carro de Patrice mas acaba sendo o único a morrer quando a bomba é ativada no seu carro.

Connie Kendrickson (Ashlie Atkinson)

Connie

Connie é a mulher de Felix e compartilha suas visões ignorantes sobre o mundo. Durante toda a narrativa, espera ansiosamente por uma oportunidade de provar o seu valor para o grupo e participar nas suas ações. No final, é ela que vai plantar a bomba no carro de Patrice e acaba matando o marido sem querer.

Análise do filme

Baseado em fatos reais

Autor de Black Klansman (2014), a obra que inspirou o filme, Ron Stallworth foi o primeiro policial negro do Colorado. Depois de espiar o discurso de Stokely Carmichael, foi promovido a detetive e criou uma oportunidade de se infiltrar na Klan, através de cartas e conversas telefônicas.

Documento de identificação de Don
Documento de identificação de Don como policial no Colorado.

Durante mais de nove meses, esteve em contato com membros da Klan, incluindo David Duke. Chegou a ser nomeado para uma posição de liderança na "organização" e foi o agente responsável por proteger Duke durante a sua visita ao Colorado.

A investigação impediu vários atos da Klan na região e revelou ligações entre o grupo e o exército mas acabou sendo terminada abruptamente, com alegações de falta de fundos. A incrível aventura de Stallworth ficou em segredo durante décadas, até ser narrada pela primeira vez em 2006, durante uma entrevista.

Discriminação, segregação e preconceito

As cenas iniciais do filme fazem referência a um momento de viragem na história dos Estados Unidos da América: a Guerra Civil, um confronto sangrento que decorreu entre os anos de 1861 e 1865.

De um lado estavam os estados do sul, unidos na Confederação e lutando com o propósito de manter a escravidão nas suas terras. Do outro, o Norte defendia a abolição e acabou se consagrando vencedor.

Bandeira da Confederação.
Bandeira da Confederação.

Depois da guerra, a abolição foi instituída na 13ª Emenda à Constituição mas a sociedade continuou discriminando a população negra em todas as instâncias da vida comum. A situação piorou com as leis de segregação racial nos estados do sul, que ficaram conhecidas como "Leis de Jim Crow" e vigoraram entre 1876 e 1965. As leis separavam negros e brancos em escolas, locais públicos e transportes.

Imagem de Jim Crow.
Jim Crow era um personagem de Thomas D. Rice usado para ridicularizar os negros.

Em 1954, no entanto, a separação nas escolas foi declarada inconstitucional, o que gerou uma nova onda de indignação e ódio racial. Esse clima é capturado no anúncio de propaganda política de Dr. Kennebrew Beauregard, interpretado por Alec Baldwin, que dá o mote do filme.

Anuncio de propaganda racista
Imagem do vídeo de propaganda política de Beauregard.

O vídeo representa o tipo de discursos políticos que proliferavam naquela época. Com a bandeira da Confederação como pano de fundo, Beauregard afirma que os americanos brancos deviam se revoltar com essa suposta "era de miscigenação e integração" que estava começando nas escolas.

Na ressaca da Segunda Guerra Mundial, fala dos judeus e dos comunistas como ameaças à supremacia branca. Sublinha também que os movimentos de direitos civis que estavam crescendo, com Martin Luther King como figura maior, seriam uma ameaça à "família branca e católica".

A fala do político pode parecer exagerada ou quase cômica, mas retrata de forma fiel os paradigmas da época, expondo o modo como o ódio era instigado através da ignorância e do medo.

Como reação aos direitos que os afro-americanos estavam conquistando lentamente, e para impedir o processo de integração, surgiu a Ku Klux Klan. O grupo terrorista apareceu pela primeira vez logo depois da Guerra Civil e ganhou força novamente em 1915, com valores de anti-imigração e antissemitismo.

Fotografia da Klan queimando uma cruz
Fotografia da Ku Klux Klan queimando uma cruz.

A organização racista foi responsável por diversos atentados terroristas e mortes motivadas por ódio. Dos anos 50 em diante, com os esforços dos movimentos civis para terminar a segregação, pequenos grupos foram se formando em todo o país, para perpetuar a ideologia e as ações da Klan.

Só depois de nos apresentar todo este contexto é que Spike Lee dá a conhecer o protagonista da sua história, Ron Stallworth, que está se preparando para se candidatar a um emprego nas forças policiais. Na porta, está um letreiro declarando que "aceitam minorias", uma pista para aquilo que vai encontrar junto dos companheiros.

Ron chegando na entrevista de emprego
Ron chegando na sua entrevista de emprego.

Antes de o contratarem, fazem perguntas acerca da sua conduta e do seu modo de vida, expressando alguns preconceitos comuns da época. Em seguida, o avisam que seria o primeiro policial negro da região e teria que aprender a "dar a outra face" perante os comentários ofensivos.

Ron é forçado a reagir passivamente às discriminações que sofre por parte dos próprios colegas de profissão. Ainda assim, insiste na sua carreira e consegue ser promovido a detetive, conduzindo a sua própria investigação contra a Klan.

Consciência, autodeterminação e resistência negra

A vida e a carreira de Ron mudam de um dia para o outro quando acorda com uma ligação do chefe, informando que tem uma missão para ele enquanto agente infiltrado. A cena tem como trilha sonora o hino Oh Happy Day, um clássico da música gospel interpretado pelo coro de Edwin Hawkins.

Stallworth é enviado para espiar o discurso de Kwame Ture, um ativista que vai dar uma palestra para um grupo de estudantes universitários. Com o objetivo de se misturar na multidão, começa a conversar com Patrice na porta do evento, descobrindo depois que ela é a organizadora.

Flip e Jimmy, companheiros da polícia, estão acompanhando tudo através das escutas e a missão de Ron é perceber se aquele grupo representa uma ameaça para a sociedade.

O ativista fala da necessidade de pararem de fugir da sua negritude e da importância de definirem padrões de beleza a partir da sua própria imagem, rejeitando os padrões brancos e eurocêntricos que vigoravam.

As palavras de Ture, no entanto, parecem despertar a atenção do agente, que vai se identificando visivelmente com aquilo que está escutando.

discurso de Ture
Ron na planteia durante o discurso de Ture.

Afirmando a urgência de reclamarem o seu black power (poder negro), relembra que precisam desaprender os modos como o opressor os ensinou a odiar a si mesmos.

Usa o exemplo o filme Tarzan, dizendo que quando era criança costumava torcer pelo protagonista branco que lutava contra "os selvagens". Com o tempo, percebeu que, na verdade, estava torcendo contra si próprio.

Fala também da guerra do Vietnã, do modo como os jovens negros e pobres estavam sendo enviados para morrer pelo país que os maltratava. Denuncia ainda a violência policial e as ações racistas que enfrentam diariamente:

Estão nos matando como cachorros nas ruas!

No final da palestra, Ron procura o líder e o questiona acerca de uma guerra racial iminente. Ele lhe responde que o conflito está chegando e que todos devem estar preparados.

Palestra patrice ture
Ture, Patrice e outros palestrantes fazendo o sinal do "black power".

Após esse primeiro contato, Ron vai descobrindo as pautas dos movimentos civis e do ativismo negro, principalmente através da nova namorada. Patrice é uma militante altamente envolvida com a causa antirracista que organiza protestos e encontros, trazendo figuras de renome ao Colorado.

Entre elas está Kwame Ture, anteriormente conhecido como Stokely Carmichael, autor do slogan político "black power" que reclamava a autodeterminação e a resistência negra nos anos 60 e 70.

Antes disso, em 1955, no Alabama, a costureira Rosa Parks se recusou a ceder o seu lugar no ônibus a um homem branco, contrariando as leis da época. A ação se tornou um símbolo de luta e contestação às normas de segregação racial.

Em 1963, com a Marcha sobre Washington, Martin Luther King se tornou um dos maiores líderes do movimento dos direitos civis norte-americanos, promovendo os valores do amor ao próximo e do pacifismo.

Marcha sobre Washington, 1963
Luther King discursando na Marcha sobre Washington, 1963.

Acompanhando os movimentos da Klan, o filme também dá conta destes episódios marcantes para a luta pela igualdade, lembrando que Ron, Patrice e todos os afro-americanos são herdeiros dessas batalhas. O discurso e a postura da jovem ativista, durante todo o filme, demonstram essa consciência e sentido de missão.

Violência policial e abuso de poder

Em 1968, Martin Luther King foi assassinado no Tennessee. Embora o crime tenha sido apontado a um presidiário fugitivo, James Earl Ray, ficou no ar a suspeita de que a morte tenha sido orquestrada pelo próprio governo.

Dois anos antes, em 1966, nascia o Partido dos Panteras Negras (Black Panther Party) uma organização revolucionária que surgiu em Oakland. A sua primeira missão era patrulhar as ruas e combater a brutalidade policial contra os cidadãos afro-americanos.

Defensores de uma política de autodefesa, os membros andavam armados e eram considerados pelo FBI "a maior ameaça à segurança interna do país". Kwame Ture fez parte do partido, e por isso Ron Stallworth foi enviado para espiar a sua palestra.

Partido dos Panteras Negras
Partido dos Panteras Negras durante um protesto.

Depois do encontro, os ativistas seguem juntos em um carro que é parado pela polícia. O agente que os aborda é Landers, que ofendia Ron no trabalho várias vezes com gírias racistas. O policial começa a revistá-los com violência, assediando Patrice e tocando no seu corpo.

Durante a cena, os ameaça de prisão e a reação deles é de revolta, respondendo: "Nós já nascemos na cadeia!". Mais tarde, quando se encontra com Ron nessa noite, ela desabafa sobre o episódio. O agente procura tomar satisfações junto dos colegas mas eles desvalorizam a situação.

Mais à frente no filme, Flip e Jimmy comentam que, no passado, o mesmo agente assassinou um garoto negro desarmado mas não sofreu consequências. Alegam que não o denunciaram porque apesar de tudo são como uma família. A indiferença e o modo como acobertam o companheiro levam o protagonista a compará-los à própria Klan.

Dentro de uma sociedade extremamente racista, os próprios agentes da autoridade acabam perpetuando os comportamentos que deveriam combater. Ron parece se debater com essa questão, levando uma vida dupla enquanto namorado de Patrice e detetive infiltrado.

Ron e Patrice de punhos erguidos
Ron e Patrice.

Durante uma conversa do casal, ela declara que não é possível mudar um sistema a partir de dentro dele mas Ron parece discordar. Quase no final do filme, consegue uma pequena vitória quando arma uma cilada para Landers. Usando uma escuta, consegue provar o discurso de ódio e a má conduta do agente, o que resulta na sua expulsão.

Pouco depois, no entanto, Ron acaba sendo vítima da discriminação e da brutalidade policial. Quando está correndo atrás de Connie para impedi-la de plantar a bomba, é parado por agentes que assumem que ele é bandido. O protagonista tenta explicar que é um detetive infiltrado mas as agressões só param quando Flip vem confirmar a história.

Ao longo da investigação, descobre o envolvimento de elementos do exército norte-americano com a Klan. Apesar de tudo o que conseguiram ao longo de nove meses, a missão de Ron e Flip foi cancelada de forma abrupta, talvez por estar revelando essas ligações.

Ron e Flip: os infiltrados

Quando responde a um anúncio de jornal e se inscreve para receber mais informações sobre a Ku Klux Klan, Ron dá seu nome verdadeiro por distração. A partir daí, começa a ser procurado por um dos membros, Walter, que quer marcar um encontro.

Precisa então que um agente branco frequente as reuniões da Klan para poder espiar, fingindo ser ele. O enviado é Flip, que descobrimos ser judeu quando alguém menciona o colar com a estrela de Davi que usa no pescoço.

Ron e Flip recebem cartão de membro do KKK
Ron e Flip recebem cartão de membro da Klan.

Desde a primeira conversa, Felix questiona a sua ascendência, bombardeando Flip com comentários antissemitas e tentando forçá-lo a fazer um teste com um polígrafo. O personagem é obrigado a negar a sua identidade repetidamente, chegando mesmo a fazer um discurso a favor do Holocausto para fingir ser um verdadeiro membro da KKK.

É notório que, ao longo da narrativa, Ron vai ficando cada vez mais investido em se unir ao movimento dos direitos civis e combater os discursos e as ações racistas que presencia. Quando discutem o caso de Landers e a brutalidade da polícia, o protagonista questiona como Flip pode agir com indiferença. Ele lhe responde:

Para você isso é uma cruzada, para mim é um trabalho!

ron e flip
Os infiltrados discutem a sua missão.

Embora tenham posturas diferentes, os dois companheiros demonstram extrema coragem e frieza de espírito quando participam na cerimônia de batismo da Klan. Flip vai como membro infiltrado e Ron como policial responsável pela proteção de Duke; mesmo quando são descobertos conseguem escapar e impedir os ataques terroristas do grupo.

Estereótipos e tropos racistas na sociedade norte-americana

São vários os estereótipos raciais que podemos encontrar ao longo do filme. Através de discursos como os de Duke, Beauregard ou Felix, Spike Lee expõe os preconceitos da época, muitos dos quais se mantêm através dos tempos.

No telefone com Duke, Ron sabe exatamente o que dizer para impressioná-lo: basta reproduzir o seu discurso de ódio e fingir que concorda com todos os seus argumentos ilógicos e ignorantes.

ron e duke
Ron e Duke durante uma conversa telefônica.

Também é interessante repararmos no uso da linguagem durante essas cenas e no significado por trás dele. O estereótipo de que as pessoas negras falavam de forma diferente, "incorreta", com sotaques e ou expressões inusitadas era muito forte, e persiste até aos dias de hoje. Ron ironiza isso, imitando o sotaque e a forma de falar de Duke.

Homem negro como predador

Representado como ignorante e violento, o homem negro era encarado como predador, força bruta, uma ameaça para a segurança principalmente das mulheres brancas. Surge o estereótipo do "Mandingo" ou "Black Buck", comparando esses homens a animais.

Essa imagem, associada a uma forte sexualização e à ideia de que eram agressivos ou imprevisíveis, gerou uma onda de linchamentos e mortes causadas por multidões de "cidadãos de bem".

Este tropo, altamente nocivo entre a população norte-americana, é bastante visível no vídeo de propaganda protagonizado por Beauregard. Os cidadãos brancos eram, através deste tipo de discursos, ensinados a temer os negros e tratá-los com violência e sem empatia alguma.

Mulher negra com cuidadora

Conversando com Ron ao telefone, Duke alega que não odeia todos os negros, apenas aqueles que se recusam a ser submissos. Fala então da emprega que o criou durante toda a infância, a sua "Mammy".

O tropo é bem conhecido do público, surgindo em diversos clássicos de Hollywood como ...E o Vento Levou (1939). Trata-se da emprega doméstica ou escrava de casa que vive para cuidar do lar e da família dos outros.

Mammy em E o Vento Levou
Hattie McDaniel em ... E o Vento Levou (1939).

Estas mulheres sempre eram representadas como pessoas sem vaidades ou ambições, cujo único propósito era acatar ordens e tomar conta dos outros.

O tipo de narrativa era tão comum na época que, durante a sua carreira, a atriz Hattie McDaniel interpretou mais de quarenta papéis como "Mammy", sendo a primeira afrodescendente a ganhar um Oscar.

Esse estereótipo de mulher obediente é totalmente desafiado pela figura de Patrice. Lutando para melhorar a sua condição de vida, lidera o movimento estudantil e encara seus inimigos de frente. Por isso, se torna o alvo principal da Klan, que a considera um perigo iminente.

Personagem negra como coadjuvante

Durante uma conversa com os amigos de Patrice, é mencionado que na maioria das histórias o personagem negro nunca é o principal. Pelo contrário, está lá para ajudar o protagonista branco, muitas vezes não tendo qualquer densidade ou objetivo sozinho.

ron falando com duke
Ron, perturbado, conversa com Duke.

O próprio filme responde, colocando um herói negro no centro da narrativa e trazendo a público os feitos quase inacreditáveis de Ron Stallworth contra uma das maiores organizações terroristas dos Estados Unidos. Aqui, a ideia é de Ron e é ele que assume as rédeas de toda a ação, apesar de ser um detetive novato.

Cultura e representatividade

Uma das cenas mais bonitas de Infiltrado na Klan é o momento em que Ron e Patrice dançam juntos. A ação decorre logo depois de conversarem sobre o assédio que ela e seus companheiros sofreram nas mãos de Landers.

A revolta que marca o diálogo sobre brutalidade policial contrasta diretamente com a alegria que a cena seguinte transmite. Estão numa festa, dançando Too Late to Turn Back Now de Cornelius Brothers & Sister Rose.

A atmosfera de amor e partilha se estende além do casal, contagia todos em volta. Apesar de todas as discriminações, existia um campo onde a cultura afro-americana estava conquistando cada vez mais reconhecimento: a música.

Ainda sobre a questão da representatividade, é interessante observar os comentários sobre cinema que atravessam o filme. Um dos precursores do cinema com temática racial em Hollywood, Spike Lee está falando com o público e com a crítica, lembrando todo o racismo que tem sido tolerado e aplaudido na sétima arte.

Quando conversam sobre filmes, Patrice e Ron mencionam Super Fly (1972) como um exemplo nocivo de associação entre afro-americanos e atos criminosos. Comentam também o subgênero Blaxploitation, filmes feitos, protagonizados e direcionados à população negra norte-americana durante os anos 70.

Por fim, faz referência ao infame O Nascimento de uma Nação (1915), o filme mudo apontado como responsável pelo renascimento da KKK. Incrivelmente tóxico para a sociedade, representava o grupo de racistas como heróis e os negros como "selvagens"; mesmo assim, foi visto por quase todos os norte-americanos, chegando a ser projetado na Casa Branca.

Uma falsa simetria

É precisamente O Nascimento de uma Nação o filme a ser projetado durante a reunião da Klan. Spike Lee intercala as cenas do encontro com a conversa dos ativistas que tiveram que abandonar o protesto por causa da ameaça de bomba.

Entre eles está Jerome Turner (interpretado por Harry Belafonte), um homem idoso que testemunhou o linchamento de Jesse Washington, um adolescente que foi falsamente incriminado por estupro.

A história, narrada com grande emotividade, é um caso verdadeiro que aconteceu em 1917, em Waco, Texas. Depois de ser acusado de estuprar uma mulher branca, Jesse foi espancado, torturado e queimado vivo em frente de 15000 pessoas, incluindo a força policial.

Jerome Turner contando a historia de Waco
Jerome Turner contando a historia de Waco.

O seu assassinato brutal foi encarado como um espetáculo para a multidão. Chegou mesmo a ser fotografado depois de morto e a imagem era vendida como recordação do "evento". O choque, a dor e o medo são visíveis nos rostos dos jovens que o escutam.

Ao mesmo tempo, na Klan, Duke discursa sobre a suposta superioridade dos seus genes. Assistem O Nascimento de uma Nação, riem, aplaudem, se beijam, comemoram e fazem a saudação nazista enquanto gritam "Poder branco".

Com esta sobreposição, Lee parece sublinhar e tornar explícito que existe uma falsa simetria no modo como a sociedade norte-americana encara as discriminações raciais. "Supremacia Branca" e "Poder Negro" não são dois lados da mesma moeda, não são grupos equivalentes que travam uma luta.

Enquanto o movimento estudantil e civil negro lutava pela igualdade de tratamento e oportunidades, os discursos de ódio batalhavam para manter o poder nas suas mãos. Os primeiros reclamavam direitos humanos fundamentais, os segundos insistiam para que o sistema continuasse igual e preservassem todos os seus privilégios.

Assim, não faz sequer sentido comparar os movimentos ou as suas motivações. Os conservadores brancos não aceitavam a igualdade porque se sentia superiores e queriam matar, planejavam emboscadas, assassinatos e todos os tipos de violência.

Enquanto isso, os ativistas pelos direitos civis procuravam se organizar e educar a população, fazer uma luta pública de consciencialização. De punho cerrado, exigiam:

Todo o poder para todas as pessoas!

Outra cena que vale a pena mencionar é aquela em que Felix e Connie estão deitados na cama, abraçados. A felicidade e a paixão do casal contrastam diretamente com aquilo que conversam: estão planejando um atentado e dizem que matar centenas de pessoas é realizar um sonho.

O momento é um exemplo gritante do modo como o discurso racista conduz à total desumanização e desvalorização da vida do outro.

Cenas finais: 1970 ou 2017?

O final do filme é, sem dúvida, a parte mais perturbadora de Infiltrado na Klan. Depois de acompanharmos a aventura de Ron e Flip, de assistirmos à ignorância e ódio da KKK e às várias lutas do ativismo negro, verificamos que tudo continua igual.

Ron e Patrice estão em casa quando escutam um barulho lá fora. Pela janela, conseguem ver vários homens vestidos com os uniformes da Klan, queimando uma cruz. A mensagem é esta: nada mudou, os Estados Unidos continuam sendo um país extremamente racista.

Lee torna isso evidente quando faz a ligação entre o ato terrorista e as imagens reais de agosto de 2017 em Charlottesville, Virginia. Na manifestação, organizada por supremacistas brancos e grupos neonazistas, foram incontáveis as armas visíveis, as bandeiras da Confederação e as cruzes suásticas do regime de Hitler.

Fotografia do encontro da direita em Charlottesville, 2017.
Fotografia da manifestação de Charlottesville, em 2017.

O ato foi recebido com uma contramanifestação promovida por cidadãos antifascistas e o confronto foi inevitável. A tragédia chegou quando James Fields, um jovem de apenas 20 anos, jogou o seu carro para cima dos contramanifestantes, ferindo várias pessoas e matando Heather Heyer.

Perante estes acontecimentos, Donald Trump, presidente da República conhecido por suas opiniões discriminatórias, não se posicionou contra o fascismo e a violência. Em vez disso, apelou à união e declarou que o ódio e fanatismo já matou "em muitos lados".

Mais uma vez, fica patente o falso paralelo, a ideia de que fascistas e antifascistas são igualmente perigosos. Infiltrado na Klan foi lançado, nos Estados Unidos, dia 10 de agosto de 2018, exatamente um ano depois do atentado de Charlottesville.

Duke em Charlotesville
Duke presente na manifestação de Charlotesville.

Spike Lee mostra que muitas décadas se passaram mas o país ainda vive na ressaca da segregação racial. As pautas dos movimentos civis continuam as mesmas e os mesmos direitos básicos seguem sendo questionados, devido aos preconceitos de sempre. Na manifestação podemos ainda ver Duke, o antigo líder da KKK, declarando que aquele é o primeiro passo para a vitória dos supremacistas.

Significado do filme: uma comédia dramática?

A característica mais singular de Infiltrado na Klan, aquilo que parece conquistar o público, é o modo como o tom do filme vai se alterando em diferentes momentos da narrativa.

A ideia de uma comédia sobre um homem negro infiltrado na Ku Klux Klan cativou os espectadores a ver o filme, mas talvez nem todos esperassem o conteúdo perturbador que Lee nos oferece. Através de um humor subversivo, cáustico, expõe e coloca em xeque o discurso do opressor.

Em várias passagens, como as conversas de Ron e Duke ao telefone, conseguimos rir da ignorância e do absurdo de alguns dos argumentos usados. Com o desenrolar dos acontecimentos, no entanto, a sensação que começa a nos invadir é a falta de esperança, o choque, e de repente é impossível rir mais.

Um exemplo é a cena arrepiante em que Ron encontra os alvos onde a Klan treinava tiro e percebe que pretendem imitar homens negros. Em silêncio, o homem examina os objetos e podemos ver o seu rosto inundado de dor.

Ron encontra alvo da KKK
Ron vê os alvos da Klan pela primeira vez.

Numa entrevista à Vanity Fair, Spike Lee declara que nunca usou a palavra "comédia" para descrever o filme. Através da sátira, Infiltrado na Klan aborda temas urgentes e problemas morais complexos. A mesma publicação afirma que se trata de um dos primeiros filmes que podem ser apontados como reação à era de Trump.

Assim, lembrando as agitações sociais e a violência da década de 70, o diretor dá voz a temas atuais do seu país, chamando a atenção para os direitos fundamentais ainda em causa.

Um filme altamente político, comenta não só o rumo que o país está tomando com a nova presidência mas também o impacto que isso está tendo na sociedade, reavivando os preconceitos e o ódio racial.

Indicado ao Oscar para melhor filme, Infiltrado na Klan é mais que uma história em imagens: é um manifesto de Spike Lee sobre a urgência da luta antirracista.

Ficha técnica

Título original Blackkklansman
Lançamento 10 de agosto de 2018 (EUA), 22 de novembro de 2018 (Brasil)
Direção Spike Lee
Roteiro Charlie Wachtel, David Rabinowitz, Kevin Willmott, Spike Lee
Duração 128 minutos
Trilha sonora Terence Blanchard
Prêmios Grand Prix (2018), Prix du Public UBS (2018), BAFTA de Cinema: Melhor Roteiro Adaptado (2019), Satellite Award para Melhor Filme Independente (2019), Óscar de Melhor Roteiro Adaptado (2019)

Cartaz do filme Infiltrado na Klan

Conheça também

Carolina Marcello
Carolina Marcello
Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes e licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Apaixonada por leitura e escrita, produz conteúdos on-line desde 2017, sobre literatura, cultura e outros campos do saber.