Músicas Vida Loka, parte I e II de Racionais MC's


Carolina Marcello
Carolina Marcello
Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes

Vida Loka, parte I e Vida Loka, parte II são músicas do grupo brasileiro de rap Racionais MC's. Foram lançadas inicialmente no disco "Nada como um Dia após o Outro Dia" (2002), surgindo de novo no disco e DVD de hits ao vivo 1000 Trutas, 1000 Tretas (2008).

Podendo ser analisadas separadamente e também como um todo, narram várias experiências de jovens desfavorecidos que se envolvem no crime como forma de sustento e sobrevivência.

Procurando retratar de forma fiel as várias facetas desse estilo de vida perigoso e também aliciante para quem busca superar a miséria, Vida Loka exprime a realidade social de muitos brasileiros em situação de risco.

Análise das músicas Vida Loka, parte I e II

Vida Loka, parte I

Introdução

Escrita por Mano Brown e Abraão, a música pretende representar uma conversa entre dois amigos, um deles preso e o outro em liberdade, que desabafam sobre suas situações atuais.

Brown liga para o companheiro encarcerado e narra o episódio de violência mais recente. Na intro da canção, conta que uma mulher inventou um caso com ele para fazer ciúme no marido, um criminoso que está procurando vingança. Os dois falam que estão bem ("firmão") mas desabafam sobre a dureza da vida dentro e fora do sistema prisional brasileiro.

Abraão, que parece ter um celular na cadeia, fala da morte de seu pai e lamenta não ter estado presente na hora final:

meu pai morreu e nem deixaram eu ir no enterro do meu coroa não, irmão.

Apesar disso, mantem uma postura otimista, anunciando que em breve vai regressar (sendo libertado ou escapando): "Logo mais eu tô aí na quebrada com vocês".

O companheiro, que ligou para contar suas desventuras, esclarece que a vida em liberdade continua sendo muito difícil e perigosa:

na rua também não tá fácil não, morô?

Descrevendo as vivências em sociedade, sublinha a ganância e a inveja que o rodeia:"Uns juntando inimigo, outros juntando dinheiro". Apesar dos riscos, declara que a vida segue e que "sempre tem um corre a mais pra fazer" . Um "corre", na gíria, é uma tarefa, alguma coisa para fazer. O termo é frequentemente associado ao crime (roubo, tráfico, etc).

Com o verso "nós aí qualquer coisa lado a lado, nós até o fim" mostra que está ciente da possibilidade de ir parar na cadeia também. Declaram sua lealdade, o laço de irmandade que os une: vão ficar juntos em qualquer cenário, durante o melhor e no pior.

Desenvolvimento

Na voz de Mano Brown, o sujeito lírico motiva seu companheiro, sublinhando a importância da fé e da proteção divina, apresentando a crença em Deus como salvação no meio do caos.

Fé em Deus que ele é justo!
Ei, irmão, nunca se esqueça
Na guarda, guerreiro, levanta a cabeça, truta
Onde estiver, seja lá como for
Tenha fé, porque até no lixão nasce flor
Ore por nós pastor, lembra da gente

Falando com Abraão, parece falar consigo mesmo, motivando também aqueles que o escutam e encorajando a manter a força e o orgulho. Apesar da fé em Deus, recomenda que se fique "na guarda", ou seja, atento. A expressão também sugere a ideia de luta, lembrando que é necessário assumir uma posição defensiva constante.

Aponta também que existe esperança, já que mesmo nas condições mais adversas, o sucesso pode surgir: o indivíduo não é determinado pelo lugar de onde vem.

Na realidade, os membros do Racionais MC's são de Capão Redondo, uma região desfavorecida da zona sul de São Paulo, mas conseguiram vencer todos os obstáculos e conquistar a fama através do seu trabalho musical.

Nesta passagem, o eu lírico fala diretamente com a Igreja, representada pela figura do "pastor". Pede que se lembrem dele e de seus companheiros, que rezem por eles. Na sequência, exprime o seu lado mais vulnerável, confessando que questiona o seu valor e tem medo do rumo que a sua vida vai tomar.

Eu me sinto às vezes meio pá, inseguro
Que nem um vira-lata, sem fé no futuro
Vem alguém lá, quem é quem, quem será meu bom
Dá meu brinquedo de furar moletom!

Contudo, no momento seguinte tem que esquecer a fragilidade, quando alguém se aproxima. O "brinquedo de furar moletom" é claramente um objeto cortante: o sujeito volta à sua postura agressiva para se proteger.

Num mundo cheio de ameaças externas, não pode dar confiança para desconhecidos, não pode deixar que se aproximem, porque teme a deslealdade e a traição:


Porque a confiança é uma mulher ingrata
Que te beija e te abraça, te rouba e te mata

Fica claro que essa forma de estar implica responder violência como violência. A agressão surge da necessidade de se defender, de revidar a todos os ataques, mesmo quando o inimigo parece inofensivo: "Se uma mosca ameaçar me catar, piso nela".

Brown retoma a história que contou no início, acrescentando que o marido ciumento mandou dois capangas na sua casa que apareceram perguntando por ele e ameaçando seus familiares:

E já pensou, doido, e se eu tô com o meu filho
No sofá, de vacilo, desarmado, era aquilo
Sem culpa e sem chance, nem pra abrir a boca
Ia nessa sem saber, (pro cê vêr), Vida Loka!

O episódio reforça a noção de como a sua vida é frágil e corre perigo, fazendo com que tema também pela segurança da sua família.

Refletindo sobre a realidade na qual está inserido, destaca o orgulho, a vaidade, a ganância como motivo principal dos conflitos e da rivalidade:

A inveja existe e a cada 10, 5 é na maldade

Conclusão

Nas estrofes finais de Vida Loka, parte I surgem algumas questões que são exploradas mais profundamente na segunda parte. Fica evidente que a postura de guerrilha é algo que o sujeito se sente obrigado a assumir em todas as situações, mesmo que no fundo deseje paz.

Mas se é pra resolver, se envolver, vai meu nome, eu vô
Fazer o que se cadeia é pra homem?
Malandrão eu? Não, ninguém é bobo
Se quer guerra, terá, se quer paz, quero em dobro

Nesta passagem, explica sua conduta e seu modo de pensar e viver. Se surge alguma confusão que envolve o seu nome, sua honra e dignidade, tem que comprar a briga, salvar sua reputação, mesmo quando isso implica ir parar na cadeia também. Mostra que está disposto a encarar as consequências de suas lutas mas também deixa claro que preferiria seguir de um modo mais pacífico.

Um por um, Deus por nós, tô aqui de passagem
Vida loka, eu não tenho dom pra vítima

Assim, num contexto de violência onde todos precisam salvar a própria pele ("um por um"), é necessário acreditar na proteção e orientação divina. Não vai ficar se lamentando pela sua situação, não quer ser uma vítima, vai fazer de tudo para sobreviver mas está consciente de que sua vida pode ser curta. Essa parece ser a definição de um "vida loka".

Evidenciando o papel de cada um em cuidar de si, a música não esquece de destacar a importância do coletivo. Mostra que amigos verdadeiros permanecem juntos até o fim: "no paraíso ou no dia do juízo".

Entre tantas relações instáveis e perigosas, os companheiros fazem questão de terminar a música reafirmando a aliança que existe entre eles.

Vida Loka, parte II

Introdução

Nesta segunda parte, Mano Brown continua sendo o letrista principal, contando com a participação do rapper Cascão na intro. A música começa com a comemoração de mais um ano de vida. O sujeito lírico agradece a o fato de seguir junto dos seus companheiros: "Graças a Deus a gente tá com saúde".

Vamos brindar o dia de hoje
Que o amanhã só pertence a Deus, a vida é loka

Seguindo a filosofia "carpe diem", expressa sua vontade de comemorar e aproveitar o dia presente, porque não sabe se estará vivo no dia seguinte. A instabilidade e os riscos que o rodeiam fazem com que valorize cada momento que passa.

Tudo, tudo, tudo vai, tudo é fase irmão
Logo mais vamo arrebentar no mundão

Mais uma vez, Mano Brown transmite uma mensagem de motivação e otimismo para aqueles que o escutam. Se dirigindo aos seus companheiros, lembra que todas as dificuldades são passageiras e que o sucesso está chegando.

Nos versos seguintes, faz uma lista de bens materiais, sinais externos de riqueza (cordões de ouro, relógios, champagne) que estarão no seu futuro.

No entanto, aquilo que parece importante mesmo é terminar com o estado de privação, de pobreza e luta constante:

É só questão de tempo, o fim do sofrimento

Desenvolvimento

Para vencer na vida, no entanto, o sujeito é forçado a adotar uma postura de defesa permanente. Desabafa sobre a necessidade de estar sempre de "olho aberto", atento e preparado para reagira a possíveis ataques. Toda essa tensão o impede de relaxar, o obriga a ficar em guarda até enquanto dorme.


Eu durmo pronto pra guerra
E eu não era assim, eu tenho ódio
E sei o que é mau pra mim
Fazer o que se é assim?

O cenário de violência e perigo iminente deixa consequências e sequelas no sujeito. Tudo isso o desgasta, faz mal para sua alma, mas ele sente que é obrigado a permanecer assim para sobreviver. O ódio que guarda e vai acumulando parece corroê-lo por dentro mas o eu lírico confessa que já que não consegue proceder de outra forma.

Vida loka cabulosa
O cheiro é de pólvora
E eu prefiro rosas
E eu que, e eu que
Sempre quis um lugar
Gramado e limpo, assim, verde como o mar
Cercas brancas, uma seringueira com balança
Disbicando pipa, cercado de criança

Nesta sequência de versos se torna evidente que a realidade do sujeito é muito diferente daquela com a qual ele sonha. O "cheiro de pólvora" invade o ar, devido aos tiros disparados, mas ele confessa que prefere a paz, simbolizada pelas rosas.

Lamenta o modo violento como tem que se comportar no cenário urbano e desprivilegiado, onde existe "um coração ferido por metro quadrado". Confessa que sempre sonhou viver no meio da natureza, longe da confusão de São Paulo, com sossego e segurança para a sua família.
Embora ainda esteja muito longe de realizar seus sonhos, mantem a fé no seu futuro e acredita que está destinado ao sucesso:


O que tiver que ser
Será meu
Tá escrito nas estrelas
Vai reclamar com Deus

Não tem inveja nem procura atrapalhar ninguém, confia nas suas capacidades e sabe que o que é seu está guardado. Apesar de todas as dificuldades, continua existindo um laivo de esperança: a felicidade "é uma trilha estreita / em meio à selva triste".

Consciente de todas as agruras do seu contexto social, revela que a única justiça que realmente importa é a divina, já que a lei dos homens é parcial e falível: "O promotor é só um homem / Deus é o juiz". O sujeito acredita que será absolvido quando se arrepender de seus crimes perante Deus.

Oh, aos 45 do segundo arrependido
Salvo e perdoado
É Dimas, o bandido

Se compara a São Dimas, "o bom ladrão" que foi crucificado com Cristo e recebido no Paraíso depois de declarar sua fé e reconhecer seus pecados na hora da morte. Declarando que Dimas foi o "primeiro vida loka da história", lembra que o bandido foi leal e morreu do lado de Jesus, enquanto "o canalha, fardado" cuspia nele.

Nesta passagem, e recorrendo à Bíblia, Mano Brown deixa uma mensagem muito importante: vida de crime não significa, necessariamente, falta de caráter ou de fé. Mesmo quebrando os mandamentos divinos e as leis humanas, este sujeito confia que as suas motivações serão compreendidas e as suas ações perdoadas: "Sei que Deus tá aqui".

Programado pra morrer nós é
Certo é certo, é crer no que der, firmeza?
Não é questão de luxo
Não é questão de cor
É questão que fartura
Alegra o sofredor

Nos versos seguintes, o eu lírico explica que esta não se trata de uma escolha ou de algo que estes indivíduos fazem porque gostam. A escassez de possibilidades é tanta, a morte parece tão próxima, que é preciso "crer no que der", fazer o que for necessário.

Mais adiante, lembra que além do poder de compra que permite adquirir tênis, carros e outros objetos de luxo, o dinheiro "abre as portas", enquanto a "miséria traz tristeza e vice-versa". Assim, mais do que qualquer sinal de riqueza, aquilo que o sujeito e seus companheiros buscam é o final de uma vida dura, de luta e sofrimento.

Além de serem desfavorecidos numa sociedade cheia de contrastes e injustiças sociais gritantes, também encaram o preconceito porque são negros. Num Brasil ainda profundamente marcado pelo racismo e o colonialismo, "preto e dinheiro são palavras rivais".

Viver pouco como um rei ou muito, como um Zé?
Às vezes eu acho que todo preto como eu
Só quer um terreno no mato, só seu
Sem luxo, descalço, nadar num riacho
Sem fome, pegando as frutas no cacho
Aí truta, é o que eu acho
Quero também, mas em São Paulo
Deus é uma nota de R$100
Vida Loka!

Assim, num verso, consegue exprimir a questão que parece dividir estes indivíduos: "viver pouco como um rei ou muito como um Zé?". Ou seja, embora o crime seja quase uma sentença de morte, pelo menos temporariamente é um modo de acabar com a miséria que os atormenta.

O capitalismo, a opressão dos ricos sobre os pobres é aquilo que os conduz à necessidade extrema e à violência. Brown lembra que todos os seus companheiros sonham com tempos de paz. No entanto, essa utopia parece inalcançável porque a fome fala mais alto e o dinheiro detém todo o poder.

Conclusão

Consciente de ter nascido num contexto social que o discrimina e prejudica, o sujeito se encara como um "guerreiro de fé". É corajoso, está disposto a tudo para sobreviver e garantir o sustento da sua família.

Porque o guerreiro de fé nunca gela
Não agrada o injusto, e não amarela
O Rei dos reis foi traído e sangrou nessa terra
Mas morrer como um homem é o prêmio da guerra

Brown termina a música lembrando que Jesus também morreu, atraiçoado, pelo que defendia. Assim, a morte nem sempre é entendida como um castigo, mas como um sinal de força. Morrer em combate seria um sinal de honra, "o prêmio da guerra", que apenas traz destruição.

Em todo o caso, o sujeito não se dá por derrotado, está preparado para morrer na luta: "A vida é loka, nêgo / E nela eu tô de passagem". Ciente da iminência da morte, pede proteção para Dimas, santo ladrão que compreende os seus pecados e conhece seu arrependimento.


A Dimas, o primeiro
Saúde guerreiro!

Significado de Vida Loka I e II

Como é habitual no rap, Racionais MC's usam o estilo musical para narrar as experiências das camadas mais desfavorecidas da sociedade, mostrando as desigualdades e injustiças que permanecem ao longo do tempo.

Vida Loka traz a voz dos deliquentes (tantas vezes representados de forma superficial e preconceituosa) na primeira pessoa. Expondo as contradições de um homem de fé que tem que sobreviver praticando crimes, vem humanizar essa figura, encarada pelos "homens de bem" como uma espécie de monstro.

Através das duas partes desta narrativa, testemunhamos que este homem perigoso, na realidade tem sonhos banais, ambiciona uma vida de paz e segurança para aqueles que ama. Como São Dimas, acredita em Deus e espera o seu perdão e a sua proteção.

Racionais MC's

retrato do racionais mc's

Fundado em 1988, o grupo de rap Racionais MC's é formado pelos rappers Mano Brown, Edi Rock e Ice Blue e pelo DJ KL. Original de Capão Redondo, zona sul de São Paulo, o grupo conquistou o público do país inteiro, se tornando numa das maiores autoridades do rap brasileiro.

Suas canções denunciam questões sociais como a pobreza, o racismo, a violência policial e a parcialidade da justiça brasileira. Tendo conquistado o sucesso, os elementos do Racionais MC's não esqueceram suas raízes e continuam fornecendo um testemunho valioso sobre a dureza e a injustiça da vida nas periferias.

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Carolina Marcello
Carolina Marcello
Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes e licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Apaixonada por leitura e escrita, produz conteúdos on-line desde 2017, sobre literatura, cultura e outros campos do saber.