Saído das mãos de um dos maiores gênios da arte de todos os tempos, o Davi (1502-1504) de Michelangelo é uma gloriosa escultura em mármore maciço com mais de 4 metros de altura de corpo, e mais de 5 contando com a base.
Encomendada ao artista em 1501, o Davi é um dos símbolos da renascença e atualmente pode ser admirada no interior da Galleria dell'Accademia, em Florença, Itália.

Análise da Obra
Davi sem Golias
A escultura remete à história bíblica de Davi e Golias, na qual o gigante e arrogante Golias (um soldado filisteu) é derrotado por Davi (apenas um rapaz) que assim ajuda os israelitas a vencer a batalha contra os filisteus.
Muitas vezes antes esta história foi representada de várias formas, mas Michelangelo difere das anteriores representações ao escolher esculpir um Davi sem Golias, e acima de tudo ao não representar um Davi vencedor.
Ao invés do que era comum, aqui Davi aparece sozinho e no momento que antecede a batalha. Ele avança desnudo para o terreno onde Golias o aguarda, carregando apenas no ombro esquerdo a funda com a qual arremessará a pedra que matará Golias.
Influências e Características
A afinidade e preferência de Michelangelo pela escultura clássica é bem clara nessa obra. A influência clássica é visível na aproximação da obra ao esquema do kouros grego. E também no fato do artista escolher esculpir um corpo musculado em oposição, por exemplo, aos corpos magros das figuras adolescentes de Donatello.
Apesar da obra exprimir algum movimento, é acima de tudo uma escultura que apresenta uma "ação em suspenso". Toda a anatomia do Davi exprime tensão, apreensão, mas também ousadia e desafio. As veias estão dilatadas, a testa franzida e o olhar é feroz e ao mesmo tempo cauteloso.

Também aqui há uma dimensão psicológica intensa, assim como em todas as obras de Michelangelo. A escultura parece ter uma vida própria interior bastante agitada, apesar da aparente clama e passividade exterior.
É uma dualidade que talvez reflita a dualidade entre o corpo e a alma que atormentou o artista a vida toda. Pois apesar de admirar e considerar o corpo humano uma expressão divina perfeita (e o qual tornou como denominador principal e primordial da sua obra), Michelangelo considerava-o também uma prisão da alma.
Mas era uma prisão nobre e bela, e que serviu de inspiração para toda a sua criação. Vejam-se as palavras de Giorgio Vasari (1511-1574, pintor, arquiteto e biógrafo de vários artistas da renascença italiana) sobre Michelangelo:
"A ideia deste homem extraordinário foi a de compor tudo em função do corpo humano e das suas proporções perfeitas, na diversidade prodigiosa das suas atitudes e, além disso, em todo o jogo de movimentos passionais e arrebatamentos da alma.".

Da mesma forma, também os blocos de pedra (analogamente ao corpo humano) eram prisões para as figuras que neles viviam e que Michelangelo, através da técnica escultórica, libertava.
Com esta obra Michelangelo assume o nu total, algo que para o artista era fundamental, pois apenas a nu o corpo poderia ser devidamente apreciado como obra-prima suprema de Deus. Da mesma forma, também aqui fica claro o total domínio do artista na representação anatômica.
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Curiosidades
A mão direita da escultura está ligeiramente desproporcional em relação ao restante corpo (sendo maior que a esquerda). Fato que deve ter sido propositado e uma forma de honrar o outro nome pelo qual Davi era também conhecido: manu fortis (forte de mão).
Em 1527 a escultura sofreu sua primeira agressão violenta quando em um protesto político umas pedras foram arremessadas contra ela partindo em três partes o seu braço esquerdo. O braço foi restaurado, mas é possível ver as fraturas por onde partiu.
Em 1991 um artista italiano de nome Piero Cannata conseguiu entrar com um pequeno martelo e esmagou o segundo dedo do pé esquerdo da escultura. Nesse momento a obra foi salva de maiores estragos porque os visitantes do museu que acompanhavam Piero Cannata interviram e o imobilizaram até que a polícia chegou.
Em anos anteriores à finalização da obra, durante muito tempo se procurou concretizar a escultura que então estava destinada a guarnecer um dos contrafortes da fachada da Catedral de Santa Maria del Fiore, em Florença, e que significa que iria ficar a muitos metros acima da altura do solo.
A empreitada passou por dois outros artistas (Agostino di Duccio e Antonio Rossellino) que se viram incapazes de finalizar a obra. Mas em 1501, Michelangelo regressou de Roma para Florença, alegadamente atraído pela ideia de realizar a escultura monumental.
Assim, a escultura foi realizada usando um bloco único de mármore que fora anteriormente rejeitado por dois artistas e que esperara a mão de gênio de Michelangelo durante 40 anos.
Michelangelo finalizou a obra em dois anos, mas a escultura que inicialmente se destinava para a Catedral acabou sendo colocada em frente ao Palazzo Vecchio olhando na direção de Roma (depois substituída por uma cópia moderna). Esta acabou se tornando em um símbolo para a cidade da vitória da democracia sobre o poder dos Medici.

A alteração de local ficou se devendo à positiva e entusiástica receção que a escultura teve, e após a sua finalização foi uma comissão criada para o efeito (da qual faziam parte nomes como Leonardo da Vinci e Boticelli) que decidiu seu destino final.
Atualmente a obra recebe mais de 8 milhões de visitantes cada ano, algo que não tem sido favorável à conservação da escultura, pois apenas as pisadas dos visitantes marchando pelo museu ao seu encontro provocam pequenos sismos que têm danificado o mármore.
Isso levou a que o governo italiano tenha tentado reclamar a propriedade da obra (tentativa de definir a escultura como tesouro nacional) contra a cidade de Florença a quem pertence por direito histórico, levando o caso para tribunal.