Eu sei, mas não devia, de Marina Colasanti (texto completo e análise)


Rebeca Fuks
Rebeca Fuks
Doutora em Estudos da Cultura

A crônica Eu sei, mas não devia, publicada pela autora Marina Colasanti (1937) no Jornal do Brasil, em 1972, continua nos cativando até os dias de hoje.

Ela nos lembra de como, muitas vezes, deixamos as nossas vidas se esvaziarem acomodados numa rotina repetitiva e estéril que não nos permite admirar a beleza que está a nossa volta.

Eu sei, mas não devia - texto completo

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

Análise de Eu sei, mas não devia

A crônica de Marina Colasanti convida o leitor a refletir sobre a sociedade de consumo, sobre como lidamos com as injustiças presentes no mundo e sobre a velocidade do tempo em que vivemos, que nos obriga a avançar sem apreciar o que está ao nosso redor.

Ao longo dos parágrafos vamos nos dando conta de como nos acostumamos com situações adversas e, em determinado momento, passamos a operar no automático. O narrador dá exemplos de pequenas concessões progressivas que vamos fazendo até, afinal, ficarmos numa situação de tristeza e esterilidade sem sequer nos darmos conta.

Vamos também perdendo paulatinamente a nossa identidade a cada vez que o turbilhão da vida nos atropela. A escrita de Marina nos coloca igualmente diante de uma importante questão: somos o que genuinamente somos ou somos aquilo que esperavam que nós fossemos?

O perigo da rotina

O narrador de Eu sei, mas não devia retrata circunstâncias bastante mundanas e com as quais todos nós conseguimos facilmente nos relacionar.

Descobrimo-nos afinal apáticos: sem reação, sem identidade, sem empatia com o outro, sem surpresa, sem euforia. Nos tornamos meros espectadores da nossa própria vida ao invés de extrairmos dela o máximo de potencialidade.

O texto de Marina nos fala especialmente porque se trata de um contexto estressado e apressado vivido num centro urbano. Vamos no dia a dia esbarrando com uma série de situações marcadas pelo conformismo e pela acomodação.

Em prol de vivermos uma vida que achamos que devemos viver, acabamos privados de uma série de experiências que nos dariam prazer e nos fariam sentir especiais.

O texto de Marina Colasanti pode ser lido como uma bem sucedida chamada de atenção para não nos deixarmos nunca afundar numa rotina vazia.

Sobre o formato da escrita

Em Eu sei, mas não devia o narrador faz uso do polissíndeto, uma figura de linguagem que acontece quando há repetição enfática de conectivos.

O objetivo desse recurso é ampliar a expressividade da mensagem: a repetição da mesma estrutura frasal faz com que lembremos do tema abordado e sintamos o mesmo sintoma de exaustão que vivemos no nosso dia a dia.

Ouça Eu sei, mas não devia

A crônica de Marina Colasanti foi recitada por Antônio Abujamra e se encontra disponível na íntegra online:

Sobre a publicação de Eu sei, mas não devia

A crônica Eu sei, mas não devia foi publicada pela primeira vez durante os anos 70 (mais precisamente em 1972), no Jornal do Brasil, tendo sido mais tarde eternizada em livro.

Eu sei, mas não devia foi reunida com outras crônicas da mesma autora sobre os mais variados assuntos tendo sido publicada pela primeira vez em formato de livro no ano de 1995 pela editora Rocco. Em 1997, a publicação recebeu um prêmio Jabuti.

Eu sei, mas não devia
Capa da primeira edição do livro Eu sei, mas não devia

A coletânea, que contém 192 páginas, carrega como título o título da crônica mais famosa de Marina Colasanti - Eu sei, mas não devia.

Biografia Marina Colasanti

A autora Marina Colasanti nasceu em 1937 em Asmara (capital da Eritreia). Em 1948 se mudou para o Brasil com a família e se estabeleceram no Rio de Janeiro.

Formada em artes plásticas, começou a trabalhar no Jornal do Brasil como jornalista. Marina foi também tradutora, publicitária e esteve envolvida com uma série de programas culturais para a televisão.

Em 1968 publicou o seu primeiro livro e, desde então, não parou de escrever os mais diversos gêneros: contos, crônicas, poesia, literatura infantil, ensaios. Muitas das suas obras foram traduzidas para outros idiomas. Marina Colasanti

Bastante celebrada pela crítica, Marina já recebeu uma série de prêmios como o Jabuti, o Grande Prêmio da Crítica da APCA e o prêmio da Biblioteca Nacional.

A escritora é casada com o também autor Affonso Romano de Sant'Anna. O casal tem duas filhas (Fabiana e Alessandra).

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Rebeca Fuks
Rebeca Fuks
Formada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2010), mestre em Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2013) e doutora em Estudos de Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e pela Universidade Católica Portuguesa de Lisboa (2018).