8 crônicas engraçadas de Luis Fernando Veríssimo comentadas


Laura Aidar
Laura Aidar
Arte-educadora, fotógrafa e artista visual

Luis Fernando Veríssimo é um escritor gaúcho reconhecido por suas famosas crônicas. Normalmente se utilizando do humor, seus textos curtos trazem histórias que versam sobre o cotidiano e as relações humanas.

Sobre a crônica como linguagem, o próprio autor define:

A crônica é um gênero literário indefinido, em que cabe tudo, do universo ao nosso umbigo, e a gente aproveita essa liberdade. Mas escrever alguma coisa que preste sobre o cotidiano é difícil. Aquela história que quem canta o seu quintal está cantando o mundo não se sustenta. Mas depende do quintal, claro.

1. A metamorfose

Uma barata acordou um dia e viu que tinha se transformado num ser humano. Começou a mexer suas patas e viu que só tinha quatro, que eram grandes e pesadas e de articulação difícil. Não tinha mais antenas. Quis emitir um som de surpresa e sem querer deu um grunhido. As outras baratas fugiram aterrorizadas para trás do móvel. Ela quis segui-las, mas não coube atrás do móvel. O seu segundo pensamento foi: “Que horror… Preciso acabar com essas baratas…”

Pensar, para a ex-barata, era uma novidade. Antigamente ela seguia seu instinto. Agora precisava raciocinar. Fez uma espécie de manto com a cortina da sala para cobrir sua nudez. Saiu pela casa e encontrou um armário num quarto, e nele, roupa de baixo e um vestido. Olhou-se no espelho e achou-se bonita. Para uma ex-barata. Maquiou-se. Todas as baratas são iguais, mas as mulheres precisam realçar sua personalidade. Adotou um nome: Vandirene. Mais tarde descobriu que só um nome não bastava. A que classe pertencia?… Tinha educação?…. Referências?… Conseguiu a muito custo um emprego como faxineira. Sua experiência de barata lhe dava acesso a sujeiras mal suspeitadas. Era uma boa faxineira.

Difícil era ser gente… Precisava comprar comida e o dinheiro não chegava. As baratas se acasalam num roçar de antenas, mas os seres humanos não. Conhecem-se, namoram, brigam, fazem as pazes, resolvem se casar, hesitam. Será que o dinheiro vai dar ? Conseguir casa, móveis, eletrodomésticos, roupa de cama, mesa e banho. Vandirene casou-se, teve filhos. Lutou muito, coitada. Filas no Instituto Nacional de Previdência Social. Pouco leite. O marido desempregado… Finalmente acertou na loteria. Quase quatro milhões ! Entre as baratas ter ou não ter quatro milhões não faz diferença. Mas Vandirene mudou. Empregou o dinheiro. Mudou de bairro. Comprou casa. Passou a vestir bem, a comer bem, a cuidar onde põe o pronome. Subiu de classe. Contratou babás e entrou na Pontifícia Universidade Católica.

Vandirene acordou um dia e viu que tinha se transformado em barata. Seu penúltimo pensamento humano foi : “Meu Deus!… A casa foi dedetizada há dois dias!…”. Seu último pensamento humano foi para seu dinheiro rendendo na financeira e que o safado do marido, seu herdeiro legal, o usaria. Depois desceu pelo pé da cama e correu para trás de um móvel. Não pensava mais em nada. Era puro instinto. Morreu cinco minutos depois , mas foram os cinco minutos mais felizes de sua vida.

Kafka não significa nada para as baratas…

Nessa obra, Veríssimo nos presenteia com uma narrativa envolvente, que associa o humor a um caráter filosófico e questionador.

Ele se referencia na obra Metamorfose de Franz Kafka, na qual um homem se transforma em uma barata.

Entretanto, aqui ocorre a transformação inversa, sendo uma barata que se humaniza, convertendo-se em mulher.

Veríssimo encontrou assim uma forma de trazer questionamentos importantes sobre a sociedade e o comportamento humano. Isso porque a todo momento ele evidencia o contraste entre o instinto versus o raciocínio.

Ele usa a barata como símbolo do irracional, mas ao descrever as complicações presentes na vida cotidiana dos seres humanos, nos faz pensar em como a própria existência e os nossos costumes são complexos. Isso é acentuado através da classe social humilde a que a mulher é inserida.

A barata, depois que vira humana, passa a se chamar Vandirene. Ela encontra trabalho como faxineira, passa por problemas financeiros e cotidianos típicos de mulheres da classe baixa, mas por um golpe de sorte, ganha na loteria e enriquece.

Nessa passagem, o autor deixa subentendido como é improvável que uma pessoa pobre consiga ficar rica, negando a ideia de que se alguém trabalhar muito conseguirá. Vandirene havia batalhado, mas só teve dinheiro quando acertou na loteria.

Por fim, a mulher acorda um dia e percebe que havia se transformado novamente em inseto, era apenas impulso, não havia mais problemas, e, por isso a felicidade era completa.

Essa conclusão sugere que no fim todas as pessoas vão igualmente perdendo a consciência, e que o dinheiro que ganharam ou não em vida já não faz o menor sentido.

2. Incidente na casa do Ferreiro

Pela janela vê-se uma floresta com macacos. Cada um no seu galho. Dois ou três olham o rabo do vizinho, mas a maioria cuida do seu. Há também um estranho moinho, movido por águas passadas. Pelo mato, aparentemente perdido – não tem cachorro – passa Maomé a caminho da montanha, para evitar um terremoto. Dentro da casa, o filho do enforcado e o ferreiro tomam chá.

Ferreiro – Nem só de pão vive o homem.
Filho do enforcado – Comigo é pão, pão, queijo, queijo.
Ferreiro – Um sanduíche! Você está com a faca e o queijo na mão. Cuidado.
Filho do enforcado – Por quê?
Ferreiro – É uma faca de dois gumes.
(Entra o cego).
Cego – Eu não quero ver! Eu não quero ver!
Ferreiro – Tirem esse cego daqui!
(Entra o guarda com o mentiroso).
Guarda (ofegante) – Peguei o mentiroso, mas o coxo fugiu.
Cego – Eu não quero ver!
(Entra o vendedor de pombas com uma pomba na mão e duas voando).
Filho do enforcado (interessado) – Quanto cada pomba?
Vendedor de pombas – Esta na mão é 50. As duas voando eu faço por 60 o par.
Cego (caminhando na direção do vendedor de pombas) – Não me mostra que eu não quero ver.
(O cego se choca com o vendedor de pombas, que larga a pomba que tinha na mão. Agora são três pombas voando sob o telhado de vidro da casa).
Ferreiro – Esse cego está cada vez pior!
Guarda – Eu vou atrás do coxo. Cuidem do mentiroso por mim. Amarrem com uma corda.
Filho do enforcado (com raiva) – Na minha casa você não diria isso!
(O guarda fica confuso, mas resolve não responder. Sai pela porta e volta em seguida).
Guarda (para o ferreiro) – Tem um pobre aí fora que quer falar com você. Algo sobre uma esmola muito grande. Parece desconfiado.
Ferreiro – É a história. Quem dá aos pobres empresta a Deus, mas acho que exagerei.
(Entra o pobre).
Pobre (para o ferreiro) – Olha aqui, doutor. Essa esmola que o senhor me deu. O que é que o senhor está querendo? Não sei não. Dá para desconfiar…
Ferreiro – Está bem. Deixa a esmola e pega uma pomba.
Cego – Essa eu nem quero ver…
(Entra o mercador).
Ferreiro (para o mercador) – Foi bom você chegar. Me ajuda a amarrar o mentiroso com uma… (Olha para o filho do enforcado). A amarrar o mentiroso.
Mercador (com a mão atrás da orelha) – Hein?
Cego – Eu não quero ver!
Mercador – O quê?
Pobre – Consegui! Peguei uma pomba!
Cego – Não me mostra.
Mercador – Como?
Pobre – Agora é só arranjar um espeto de ferro que eu faço um galeto.
Mercador – Hein?
Ferreiro (perdendo a paciência) – Me dêem uma corda. (O filho do enforcado vai embora, furioso).
Pobre (para o ferreiro) – Me arranja um espeto de ferro?
Ferreiro – Nesta casa só tem espeto de pau.
(Uma pedra fura o telhado de vidro, obviamente atirada pelo filho do enforcado, e pega na perna do mentiroso. O mentiroso sai mancando pela porta enquanto as duas pombas voam pelo buraco no telhado).
Mentiroso (antes de sair) – Agora quero ver aquele guarda me pegar!
(Entra o último, de tapa-olho, pela porta de trás).
Ferreiro – Como é que você entrou aqui?
Último – Arrombei a porta.
Ferreiro – Vou ter que arranjar uma tranca. De pau, claro.
Último – Vim avisar que já é verão. Vi não uma mas duas andorinhas voando aí fora.
Mercador – Hein?
Ferreiro – Não era andorinha, era pomba. E das baratas.
Pobre (para o último) – Ei, você aí de um olho só…
Cego (prostrando-se ao chão por engano na frente do mercador) – Meu rei.
Mercador – O quê?
Ferreiro – Chega! Chega! Todos para fora! A porta da rua é serventia da casa!

(Todos se precipitam para a porta, menos o cego, que vai de encontro à parede. Mas o último protesta).
Último – Parem! Eu serei o primeiro.
(Todos saem com o último na frente. O cego vai atrás).
Cego – Meu rei! Meu rei!

Incidente na casa do ferreiro traz uma história cheia de referências a ditados populares brasileiros. É por meio dos provérbios que Luis Fernando Veríssimo faz um texto marcado pelo absurdo e pelo cômico.

Logo no início percebemos um narrador-observador que nos descreve o cenário em que se passa a história. O espaço-tempo já nos revela um ambiente ilógico e atemporal, onde águas passadas movem um moinho e macacos cuidam do seu próprio rabo, cada um no seu galho.

Os personagens principais são o “ferreiro” (fazendo alusão à “em casa de ferreiro o espeto é de pau”) e o “filho do enforcado” (referência de “em casa de enforcado não se fala em corda”).

Outros personagens vão surgindo aos poucos, como um cego, um vendedor, um guarda, um mentiroso, um coxo, um pobre, um mercador e o “último”. Todos eles estão relacionados a ditos populares e juntos na mesma narrativa criam uma atmosfera teatral e satírica.

Para melhor compreensão do texto, é esperado que o leitor tenha conhecimento dos provérbios citados. Por isso, a crônica se torna também uma espécie de “piada interna” para o povo brasileiro.

Para conhecer mais sobre provérbios, leia: Ditados populares e seus significados.

3. Cuia

Lindaura, a recepcionista do analista de Bagé ― segundo ele, “mais prestimosa que mãe de noiva” ―, tem sempre uma chaleira com água quente pronta para o mate. O analista gosta de oferecer chimarrão a seus pacientes e, como ele diz, “charlar passando a cuia, que loucura não tem micróbio”. Um dia entrou um paciente novo no consultório.

― Buenas, tchê ― saudou o analista. ― Se abanque no más.
O moço deitou no divã coberto com um pelego e o analista foi logo lhe alcançando a cuia com erva nova. O moço observou:
― Cuia mais linda.
― Cosa mui especial. Me deu meu primeiro paciente. O coronel Macedônio, lá pras banda de Lavras.
― A troco de quê? ― quis saber o moço, chupando a bomba.
― Pues tava variando, pensando que era metade homem e metade cavalo. Curei o animal.
― Oigalê.
― Ele até que não se importava, pues poupava montaria. A família é que encrencou com a bosta dentro de casa.
― A la putcha.
O moço deu outra chupada, depois examinou a cuia com mais cuidado.
― Curtida barbaridade. ― Também. Mais usada que pronome oblíquo em conversa de professor.
― Oigatê.
E a todas estas o moço não devolvia a cuia. O analista perguntou:
― Mas o que é que lhe traz aqui, índio velho?
― É esta mania que eu tenho, doutor.
― Pos desembuche.
― Gosto de roubar as coisas.
― Sim.
Era cleptomania. O paciente continuou a falar, mas o analista não ouvia mais.
Estava de olho na sua cuia.
― Passa ― disse o analista.
― Não passa, doutor. Tenho esta mania desde piá.
― Passa a cuia.
― O senhor pode me curar, doutor?
― Primeiro devolve a cuia.

O moço devolveu. Daí para diante, só o analista tomou chimarrão. E cada vez que o paciente estendia o braço para receber a cuia de volta, ganhava um tapa na mão.

O pequeno texto faz parte do livro O analista de Bagé (1981), em que o escritor apresenta como protagonista um psicanalista gaúcho que não leva jeito para cuidar da saúde mental das pessoas.

O personagem é bastante rude e grosseiro, expondo em forma de caricatura algumas características e estereótipos associados ao homem do sul do país.

O que dá o tom surpreendente e risível da história é o contraste entre a personalidade e a profissão do homem, pois para ser um terapeuta deve-se ter tato e compreensão, o que definitivamente o analista de Bagé não tem.

No diálogo podemos observar algumas palavras típicas do vocabulário gaúcho, como “piá” (menino), “charlar” (conversar), “oigalê” e “oigatê” (que denotam espanto e surpresa). A “cuia”, que dá o nome ao texto, é o nome do recipiente usado para beber o chá mate, muito comum entre os gaúchos.

Esse personagem é o mais conhecido de Luis Fernando Veríssimo, contribuindo para tornar suas crônicas famosas.

4. O Homem Trocado

O homem acorda da anestesia e olha em volta. Ainda está na sala de recuperação. Há uma enfermeira do seu lado. Ele pergunta se foi tudo bem.

– Tudo perfeito - diz a enfermeira, sorrindo.
– Eu estava com medo desta operação...
– Por quê? Não havia risco nenhum.
– Comigo, sempre há risco. Minha vida tem sido uma série de enganos... E conta que os enganos começaram com seu nascimento.

Houve uma troca de bebês no berçário e ele foi criado até os dez anos por um casal de orientais, que nunca entenderam o fato de terem um filho claro com olhos redondos. Descoberto o erro, ele fora viver com seus verdadeiros pais. Ou com sua verdadeira mãe, pois o pai abandonara a mulher depois que esta não soubera explicar o nascimento de um bebê chinês.

– E o meu nome? Outro engano.
– Seu nome não é Lírio?
– Era para ser Lauro. Se enganaram no cartório e... Os enganos se sucediam.

Na escola, vivia recebendo castigo pelo que não fazia. Fizera o vestibular com sucesso, mas não conseguira entrar na universidade. O computador se enganara, seu nome não apareceu na lista.

– Há anos que a minha conta do telefone vem com cifras incríveis. No mês passado tive que pagar mais de R$ 3 mil.
– O senhor não faz chamadas interurbanas?
– Eu não tenho telefone!

Conhecera sua mulher por engano. Ela o confundira com outro. Não foram felizes.

– Por quê?
– Ela me enganava.

Fora preso por engano. Várias vezes. Recebia intimações para pagar dívidas que não fazia. Até tivera uma breve, louca alegria, quando ouvira o médico dizer: - O senhor está desenganado. Mas também fora um engano do médico. Não era tão grave assim. Uma simples apendicite.

– Se você diz que a operação foi bem...
A enfermeira parou de sorrir.
– Apendicite? - perguntou, hesitante.
– É. A operação era para tirar o apêndice.
– Não era para trocar de sexo?

Nesse texto, o escritor nos apresenta o diálogo entre um paciente que acaba de realizar uma operação e uma enfermeira. O homem pergunta se a cirurgia correu bem, ao que a mulher responde que sim.

A partir de então o paciente começa a contar sobre uma série de enganos que ocorreram em sua trajetória de vida, iniciando já na maternidade.

São fatos tão absurdos que nos levam a achar graça e sentir compaixão pelo personagem. Note que cada um desses “enganos” atua como pequenas anedotas na narrativa.

Uma palavra importante para a compreensão do humor no texto é “desenganado”. Essa palavra aqui significa “condenado à morte”, mas pode ser entendida também como se pudesse “desfazer os enganos” que ocorreram na vida do homem.

Ao final, Luis Fernando Veríssimo surpreende mais uma vez o leitor, quando a enfermeira revela mais um engano, e dessa vez irreversível. Na operação realizada, o sexo do sujeito foi trocado sem ele saber.

5. Dois mais dois

O Rodrigo não entendia por que precisava aprender matemática, já que a sua minicalculadora faria todas as contas por ele, pelo resto da vida, e então a professora resolveu contar uma história.

Contou a história do Supercomputador. Um dia disse a professora, todos os computadores do mundo serão unificados num único sistema, e o centro do sistema será em alguma cidade do Japão. Todas as casas do mundo, todos os lugares do mundo terão terminais do Supercomputador. As pessoas usarão o Supercomputador para compras, para recados, para reservas de avião, para consultas sentimentais. Para tudo. Ninguém mais precisará de relógios individuais, de livros ou de calculadoras portáteis. Não precisará mais nem estudar. Tudo que alguém quiser saber sobre qualquer coisa estará na memória do Supercomputador, ao alcance de qualquer um. Em milésimos de segundo a resposta à consulta estará na tela mais próxima. E haverá bilhões de telas espalhadas por onde o homem estiver, desde lavatórios públicos até estações espaciais. Bastará ao homem apertar um botão para ter a informação que quiser.

Um dia, um garoto perguntará ao pai:

– Pai, quanto é dois mais dois?
– Não pergunte a mim – dirá o pai -, pergunte a Ele.

E o garoto digitará os botões apropriados e num milésimo de segundo a resposta aparecerá na tela. E então o garoto dirá:

– Como é que sei que a resposta é certa?
– Porque Ele disse que é certa – responderá o pai.
– E se Ele estiver errado?
– Ele nunca erra.
– Mas se estiver?
– Sempre podemos contar nos dedos.
– O quê?
– Contar nos dedos, como faziam os antigos. Levante dois dedos. Agora mais dois. Viu? Um, dois, três, quatro. O computador está certo.
– Mas, pai, e 362 vezes 17? Não dá para contar nos dedos. A não ser reunindo muita gente e usando os dedos das mãos e dos pés. Como saber se a resposta d’Ele está certa? Aí o pai suspirou e disse:
– Jamais saberemos...

O Rodrigo gostou da história, mas disse que, quando ninguém mais soubesse matemática e não pudesse pôr o Computador à prova, então não faria diferença se o Computador estava certo ou não, já que a sua resposta seria a única disponível e, portanto, a certa, mesmo que estivesse errada, e... Aí foi a vez da professora suspirar.

Nessa crônica curta, Veríssimo explora a inocência e sagacidade infantil.

Aqui, é exibida uma situação onde a narrativa é imaginada por uma pessoa adulta, a professora, e usada como recurso pedagógico para “convencer” seu aluno da importância de aprender a fazer contas.

Entretanto, a expectativa da professora é frustrada pela fala da criança, que chega a conclusões que fogem do esperado.

Assim, temos um texto com humor leve que nos leva a pensar em como as crianças muitas vezes são imprevisíveis e perspicazes.

6. A foto

Foi numa festa de família, dessas de fim de ano. Já que o bisavô estava morre não morre, decidiram tirar uma fotografia de toda a família reunida, talvez pela última vez.

A bisa e o bisa sentados, filhos, filhas, noras, genros e netos em volta, bisnetos na frente, esparramados pelo chão. Castelo, o dono da câmara, comandou a pose, depois tirou o olho do visor e ofereceu a câmara a quem ia tirar a fotografia. Mas quem ia tirar a fotografia? – Tira você mesmo, ué. – Ah, é? E eu não saio na foto?

O Castelo era o genro mais velho. O primeiro genro. O que sustentava os velhos. Tinha que estar na fotografia. – Tiro eu - disse o marido da Bitinha. – Você fica aqui - comandou a Bitinha. Havia uma certa resistência ao marido da Bitinha na família. A Bitinha, orgulhosa, insistia para que o marido reagisse. "Não deixa eles te humilharem, Mário Cesar", dizia sempre. O Mário Cesar ficou firme onde estava, do lado da mulher.

A própria Bitinha fez a sugestão maldosa: – Acho que quem deve tirar é o Dudu... O Dudu era o filho mais novo de Andradina, uma das noras, casada com o Luiz Olavo. Havia a suspeita, nunca claramente anunciada, de que não fosse filho do Luiz Olavo. O Dudu se prontificou a tirar a fotografia, mas a Andradina segurou o filho. – Só faltava essa, o Dudu não sair.

E agora? – Pô, Castelo. Você disse que essa câmara só faltava falar. E não tem nem timer! O Castelo impávido. Tinham ciúmes dele. Porque ele tinha um Santana do ano. Porque comprara a câmara num duty free da Europa. Aliás, o apelido dele entre os outros era "Dutifri", mas ele não sabia.

– Revezamento - sugeriu alguém. – Cada genro bate uma foto em que ele não aparece, e... A ideia foi sepultada em protestos. Tinha que ser toda a família reunida em volta da bisa. Foi quando o próprio bisa se ergueu, caminhou decididamente até o Castelo e arrancou a câmara da sua mão. – Dá aqui. – Mas seu Domício... – Vai pra lá e fica quieto. – Papai, o senhor tem que sair na foto. Senão não tem sentido! – Eu fico implícito - disse o velho, já com o olho no visor. E antes que houvesse mais protestos, acionou a câmara, tirou a foto e foi dormir.

O texto “A foto” exibe uma situação típica de uma família de classe média. Em um simples momento, o cronista consegue revelar diversas facetas de cada personagem, deixando evidente sentimentos como insegurança, inveja, orgulho, sarcasmo e ciúmes, fazendo uma crítica à falsidade nas relações familiares.

O motivo da fotografia na narrativa era claro: fazer um registro com todos em volta do casal idoso, sendo que o patriarca estava prestes a morrer.

Portanto, a pessoa mais importante ali era o velho. Entretanto, vendo a confusão entre os parentes para saber quem tiraria a fotografia (e ficaria de fora do registro), o próprio bisavô se levanta e faz a foto.

O caráter humorístico da história se dá pois, enquanto a família discutia suas diferenças, o senhorzinho só queria mesmo acabar com aquele momento desconfortável.

Ele não se importa de fato com o registro e diz que sua presença ficaria "implícita", ou seja, ficaria oculta, mas subentendida na foto.

7. Aviãozinho

A estratégia do falso aviãozinho que todas as mães do mundo ― literalmente: todas ― usam para convencer o bebê a comer sua papinha e é tão antiga quanto o próprio avião, não tem nenhuma lógica. Para começar, é pouco provável que um bebê na idade de comer papinha sequer saiba o que é um avião. A mãe fazer o ruído do motor enquanto aproxima o pseudoaviãozinho da sua boca não ajuda em nada, o bebê também não sabe como é barulho de avião. Para ele aquilo é apenas outro barulho de mãe.

Em segundo lugar, não há qualquer razão para um bebê aceitar papinha de um avião que não aceitaria de uma colher. No seu universo, avião e colher é a mesma coisa. Navio e colher é a mesma coisa. Se o bebê, por um fenômeno de precocidade, se desse conta do surrealismo da cena ― "Abre a boquinha que lá vai o aviãozinho"?! ― isso seria mais causa para espanto do que para abrir a boca. Quem quer comer papinha com um avião se aproximando da sua boca, fazendo barulho?

Pensando bem, nossa infância era cheia de surrealismo inconsciente, de ameaças e sentenças que só não nos paralisavam de medo ou perplexidade porque não pensávamos muito a respeito. Não me lembro de ficar muito impressionado com a informação de que eu só não perdia a cabeça porque ela estava presa no corpo, por exemplo. Hoje, sim, penso naquela terrível possível conseqüência da minha distração ― ir embora e deixar a cabeça em algum lugar! Ou, já que o cérebro estava na cabeça, pelo menos a maior parte, me dar conta que meu corpo tinha me esquecido. Sem poder gritar, sem poder sequer assoviar, já que os pulmões tinham ido junto. Uma cabeça abandonada no mundo, incapaz de sequer se alimentar.

A não ser, claro, que um aviãozinho surgisse, misteriosamente, do passado, carregado de papinha, para me salvar. Pulseira dourada Mais lembranças inúteis. Tinha eu meus 7 anos... Se você quiser parar por aqui, tudo bem. Não, não, nenhum constrangimento. Vá ler o resto do jornal, aqui você só estaria perdendo tempo. O que é isso? Eu entendo. Numa boa. Eu mesmo só fico porque preciso botar o ponto final. Mas tinha eu meus 7 anos e morávamos em Los Angeles. Meu pai lecionava na Ucla, eu e minha irmã freqüentávamos uma escola perto de casa. E me apaixonei por uma menina da escola. Uma daquelas paixões dos 7 anos, terrível e, no meu caso, secreta e silenciosa. Os donos da casa que alugávamos tinham deixado uma bijuteria mal escondida atrás de uns livros, numa prateleira da sala. Uma pulseira dourada dentro de uma caixa. Um dia, tomei a decisão. Meu amor justificava tudo, até o crime. Peguei a pulseira e a levei, escondida, para a escola. Na saída, entreguei a caixa para a menina ― e saí correndo.

Em casa nunca deram falta da pulseira. A menina nunca disse nada sobre o presente. Eu, obviamente, nunca mencionei o fato para ninguém, muito menos para a menina ― com quem, aliás, nunca troquei nem um tímido "hello". A história termina aqui. Eu avisei que você ia perder tempo. Mas às vezes penso naquela pulseira e imagino coisas. Chegar, um dia, nos Estados Unidos e alguém da imigração americana consultar um computador e dizer "Há a questão de uma certa pulseira dourada na Califórnia, Mr. Verissimo..." Estar assistindo à entrevista de alguma atriz famosa na TV e ela contar que um dia, quando tinha 7 anos, um garoto estranho lhe entregara uma pulseira e saíra correndo, e mostrar a pulseira dourada, que lhe dera sorte, que era responsável pelo seu sucesso, e que ela nunca pudera agradecer... Pelo menos minha vida de crimes acabou ali.

Post-scriptum tipo nada a ver com nada. Muitos anos depois visitei o bairro em que morávamos em Los Angeles e fui procurar a escola, palco do meu gesto tresloucado. Tinha sido destruída por um terremoto.

Mudança ― As seis colunas semanais que publico no Estadão vão ser reduzidas para duas: esta, aos domingos, e uma que sairá às quintas-feiras. A mudança é a meu pedido, por nenhuma outra razão além da mais antiga que existe, a vontade de trabalhar menos. Esta seção continuará igual. Não adianta protestar, continuará.

Nesse texto autobiográfico, Veríssimo reflete sobre as situações curiosas da vida, principalmente as que acontecem na infância. Ao dizer sobre o "aviãozinho", um costume das mães e cuidadores na alimentação dos bebês, o escritor elabora um pensamento bem mais profundo sobre os absurdos que naturalizamos ao longo da vida.

Depois ele revela um fato intrigante de quando era pequeno, em que roubara uma pulseira para presentear a amada e nunca conversou com ela para saber as consequências de seu ato.

Ele fantasia cenários incríveis em que sua ação "criminosa" teria tido grande importância para a garota, transformada em mulher. É bem provável que a ação tenha maior impacto na vida de Veríssimo do que na vida da menina, mas a imaginação cria realidades muito mais interessantes.

8. Outro de elevador

"Ascende" dizia o ascensorista. Depois: "Eleva-se". "Para cima". "Para o alto". "Escalando". Quando perguntavam "Sobe ou desce?" respondia "A primeira alternativa". Depois dizia "Descende", "Ruma para baixo", "Cai controladamente", "A segunda alternativa"... "Gosto de improvisar", justificava-se. Mas como toda arte tende para o excesso, chegou ao preciosismo. Quando perguntavam "Sobe?" respondia "É o que veremos..." ou então "Como a Virgem Maria". Desce? "Dei" Nem todo o mundo compreendia, mas alguns o instigavam. Quando comentavam que devia ser uma chatice trabalhar em elevador ele não respondia "tem seus altos e baixos", como esperavam, respondia, criticamente, que era melhor do que trabalhar em escada, ou que não se importava embora o seu sonho fosse, um dia, comandar alguma coisa que andasse para os lados... E quando ele perdeu o emprego porque substituíram o elevador antigo do prédio por um moderno, automático, daqueles que têm música ambiental, disse: "Era só me pedirem ― eu também canto!"

A crônica mostra a atividade diária de um simples ascensorista de elevador de maneira criativa e crítica. O autor apresenta o trabalhador realizando uma tarefa desgastante e monótona, mas que usando sua inventividade consegue criar um pouco de emoção no cotidiano.

A surpresa da história se dá quando percebemos que, mesmo cansado daquela rotina, o homem preferia continuar em seu trabalho do que ser demitido, exibindo com humor o problema do desemprego.

Quem é Luis Fernando Veríssimo?

Retrato de Luis Fernando Veríssimo exibe fotografia do escritor em perfil segurando microfone em fundo preto

Luis Fernando Veríssimo iniciou sua carreira como escritor no final dos anos 60 no jornal “Zero Hora”, de Porto Alegre. Foi quando começou a escrever crônicas curtas, que com o tempo passaram a chamar atenção pelo tom bem-humorado e marcado pela ironia.

Filho do importante romancista Érico Veríssimo, Luis Fernando se tornou um dos mais conhecidos escritores brasileiros, atuando ainda como cartunista e saxofonista.

Trabalhou ainda para vários jornais e revistas, como a “Veja” e o “O Estadão” e tem também algumas obras ficcionais.

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Laura Aidar
Laura Aidar
Arte-educadora, artista visual e fotógrafa. Licenciada em Educação Artística pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e formada em Fotografia pela Escola Panamericana de Arte e Design.