7 crônicas curtas com interpretação


Laura Aidar
Revisão por Laura Aidar
Arte-educadora, fotógrafa e artista visual

Um gênero literário bastante diverso e estudado no Brasil, a crônica é um tipo de texto habitualmente breve que utiliza linguagem simples e acessível. Seus temas costumam estar relacionados como o cotidiano, espelhando o contexto sociocultural e político do momento da produção.

As crônicas também podem assumir várias funções diferentes. Como exemplos de crônicas temos textos descritivos, humorísticos, jornalísticos, líricos ou históricos.

1. Furto de flor, Carlos Drummond de Andrade

Furtei uma flor daquele jardim. O porteiro do edifício cochilava e eu furtei a flor. Trouxe-a para casa e coloquei-a no copo com água. Logo senti que ela não estava feliz. O copo destina-se a beber, e flor não é para ser bebida.
Passei-a para o vaso, e notei que ela me agradecia, revelando melhor sua delicada composição. Quantas novidades há numa flor, se a contemplarmos bem. Sendo autor do furto, eu assumira a obrigação de conservá-la. Renovei a água do vaso, mas a flor empalidecia. Temi por sua vida. Não adiantava restituí-la ao jardim. Nem apelar para o médico das flores. Eu a furtara, eu a via morrer.
Já murcha, e com a cor particular da morte, peguei-a docemente e fui depositá-la no jardim onde desabrochara. O porteiro estava atento e repreendeu-me:
– Que ideia a sua, vir jogar lixo de sua casa neste jardim!

Um dos nomes mais célebres da literatura nacional, Carlos Drummond de Andrade (1902 — 1987) é lembrado principalmente pela sua poesia atemporal. Contudo, o autor também escreveu grandes textos em prosa, como o apresentamos acima.

A famosa crônica foi publicada na obra Contos Plausíveis (1985) e parte de uma ação simples, um episódio do cotidiano que acaba suscitando reflexões e sentimentos profundos.

Num gesto espontâneo, o homem colhe uma flor do jardim. Nos dias seguintes, ele acompanha o seu processo de decomposição, sendo levado a pensar sobre a passagem do tempo, a fragilidade e efemeridade da vida.

Confira também os maiores poemas de Carlos Drummond de Andrade.

2. O pavão, Rubem Braga

Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores; é um luxo imperial. Mas andei lendo livros; e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d'água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas. Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade.
Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! minha amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz de teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico.

Rubem Braga (1913 — 1990), apontado como um dos maiores cronistas brasileiros, publicou dezenas de livros do gênero, ajudando a defini-lo no nosso país.

O texto que selecionamos foi escrito em 1958 e integra a obra 200 Crônicas Escolhidas (1978), uma coletânea que reúne os seus melhores escritos produzidos entre os anos de 1935 e 1977. Aqui, partimos de uma descoberta curiosa acerca do pavão, animal conhecido pela sua beleza.

Na verdade, as cores dos pavões não dependeriam das suas penas, mas do modo como a luz é refletida por elas. Isso leva o autor a fazer considerações sobre a criação artística e a importância da simplicidade.

Logo depois, utiliza a metáfora para se dirigir à mulher que ama e se compara ao próprio animal. Declarando que o seu brilho depende da forma como é olhado por ela, sublinha a delícia de ser amado, a felicidade e a confiança que isso traz às nossas vidas.

3. Por não estarem distraídos, Clarice Lispector

Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria e peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque – a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras – e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.

Publicado na obra Para Não Esquecer (1978), este é um dos textos breves e repletos de lirismo que marcaram a carreira literária de Clarice Lispector (1920 — 1977), além dos seus inesquecíveis romances.

Em "Por não estarem distraídos" podemos encontrar dois personagens sem nome; pela simples descrição dos eventos, conseguimos perceber que se trata de um casal apaixonado. No começo, é evidente o entusiasmo enquanto passeiam pela cidade, totalmente submersos na conversa e na presença um do outro.

Contudo, as coisas se alteram de repente, de forma irremediável. Quando param de aproveitar o momento e tentam recriar a felicidade inicial, suas expectativas são frustradas: entram em desencontro, não conseguem mais se comunicar.

Este recorte da vida cotidiana ilustra o começo e o fim de uma paixão, mostrando a delicadeza das ligações humanas e o modo como nossas ansiedades e pressões podem prejudicá-las.

4. Beijinho, beijinho, Luís Fernando Veríssimo

Na festa dos 34 anos da Clarinha, o seu marido, Amaro, fez um discurso muito aplaudido. Declarou que não trocava a sua Clarinha por duas de 17, sabiam por quê? Porque a Clarinha era duas de 17. Tinha a vivacidade, o frescor e, deduzia-se, o fervor sexual somado de duas adolescentes. No carro, depois da festa, o Marinho comentou:
‒ Bonito, o discurso do Amaro.
‒ Não dou dois meses para eles se separarem ‒ disse a Nair.
‒ O quê?
‒ Marido, quando começa a elogiar muito a mulher…
Nair deixou no ar todas as implicações da duplicidade masculina.
‒ Mas eles parecem cada vez mais apaixonados ‒ protestou Marinho.
‒ Exatamente. Apaixonados demais. Lembra o que eu disse quando a Janice e o Pedrão começaram a andar de mãos dadas?
‒ É mesmo…
‒ Vinte anos de casados e de repente começam a andar de mãos dadas? Como namorados? Ali tinha coisa.
‒ É mesmo…
‒ E não deu outra. Divórcio e litigioso.
‒ Você tem razão.
‒ E o Mário com a coitada da Marli? De uma hora para outra? Beijinho, beijinho, “mulher formidável” e descobriram que ele estava de caso com a gerente da loja dela.
‒ Você acha, então, que o Amaro tem outra?
‒ Ou outras.
Nem duas de 17 estavam fora de cogitação.
‒ Acho que você tem razão, Nair. Nenhum homem faz uma declaração daquelas assim, sem outros motivos.
‒ Eu sei que tenho razão.
‒ Você tem sempre razão, Nair.
‒ Sempre, não sei.
‒ Sempre. Você é inteligente, sensata, perspicaz e invariavelmente acerta na mosca. Você é uma mulher formidável, Nair. Durante algum tempo, só se ouviu, dentro do carro, o chiado dos pneus no asfalto. Aí Nair perguntou:
‒ Quem é ela, Marinho?

Luís Fernando Veríssimo (1936), um dos cronistas brasileiros mais famosos da contemporaneidade, é conhecido pelo humor que caracteriza seus textos. A crônica "Beijinho, beijinho", atravessada pela sátira e pela crítica social, é um bom exemplo do seu estilo.

Nela assistimos à conversa de um casal, Nair e Marinho, após um evento de amigos. O clima de romance entre Amaro e Clarinha vira fonte de intrigas e fofocas, suscitando desconfianças.

Falando com o marido, Nair revela que achou o comportamento exagerado e suspeito: elogiando a esposa assim, o outro deveria estar escondendo algo. Para provar a sua teoria, ela começa a citar vários casos de adultério que aconteceram no círculo de amigos deles.

O marido, convencido pela argumentação, começa a elogiar a sua perspicácia, fazendo com que Nair desconfie que está sendo traída também. Através de um tom cômico, o texto expressa uma visão cínica sobre o casamento e as relações duradouras.

Confira também as crônicas mais engraçadas de Luís Fernando Veríssimo.

5. Conversinha mineira, Fernando Sabino

— É bom mesmo o cafezinho daqui, meu amigo?
— Sei dizer não senhor: não tomo café.
— Você é dono do café, não sabe dizer?
— Ninguém tem reclamado dele não senhor.
— Então me dá café com leite, pão e manteiga.
— Café com leite só se for sem leite.
— Não tem leite?
— Hoje, não senhor.
— Por que hoje não?
— Porque hoje o leiteiro não veio.
— Ontem ele veio?
— Ontem não.
— Quando é que ele vem?
— Tem dia certo não senhor. Às vezes vem, às vezes não vem. Só que no dia que devia vir em geral não vem.
— Mas ali fora está escrito “Leiteria”!
— Ah, isso está, sim senhor.
— Quando é que tem leite?
— Quando o leiteiro vem.
— Tem ali um sujeito comendo coalhada. É feita de quê?
— O quê: coalhada? Então o senhor não sabe de que é feita a coalhada?
— Está bem, você ganhou. Me traz um café com leite sem leite. Escuta uma coisa: como é que vai indo a política aqui na sua cidade?
— Sei dizer não senhor: eu não sou daqui.
— E há quanto tempo o senhor mora aqui?
— Vai para uns quinze anos. Isto é, não posso agarantir com certeza: um pouco mais, um pouco menos.
— Já dava para saber como vai indo a situação, não acha?
— Ah, o senhor fala da situação? Dizem que vai bem.
— Para que Partido? — Para todos os Partidos, parece.
— Eu gostaria de saber quem é que vai ganhar a eleição aqui.
— Eu também gostaria. Uns falam que é um, outros falam que outro. Nessa mexida...
— E o Prefeito?
— Que é que tem o Prefeito?
— Que tal o Prefeito daqui?
— O Prefeito? É tal e qual eles falam dele.
— Que é que falam dele?
— Dele? Uai, esse trem todo que falam de tudo quanto é Prefeito.
— Você, certamente, já tem candidato.
— Quem, eu? Estou esperando as plataformas.
— Mas tem ali o retrato de um candidato dependurado na parede, que história é essa?
— Aonde, ali? Uê, gente: penduraram isso aí...

Fernando Sabino (1923 — 2004), escritor e jornalista nascido em Belo Horizonte, faz uma viagem bem-humorada às suas origens na crônica "Conversinha mineira".

O texto publicado na obra A Mulher do Vizinho (1962) utiliza um registro de linguagem bastante próximo da oralidade, reproduzindo uma conversa banal.

Aquilo que chama a atenção no diálogo são as respostas estranhas do dono do estabelecimento que parece não ter consciência daquilo que o rodeia.

Além de não se interessar pelo próprio negócio, se desviando das várias questões colocadas, ele também não se importa com a situação política do local e prefere não tomar uma posição.

6. Bonitas mesmo, Martha Medeiros

Quando é que uma mulher é realmente bonita? No momento em que sai do cabeleireiro? Quando está numa festa? Quando posa para uma foto? Clic, clic, clic. Sorriso amarelo, postura artificial, desempenho para o público. Bonitas mesmo somos quando ninguém está nos vendo.
Atirada no sofá, com uma calça de ficar em casa, uma blusa faltando um botão, as pernas enroscadas uma na outra, o cabelo caindo de qualquer jeito pelo ombro, nenhuma preocupação se o batom resistiu ou não à longa passagem do dia. Um livro nas mãos, o olhar perdido dentro de tantas palavras, um ar de descoberta no rosto. Linda.
Caminhando pela rua, sol escaldante, a manga da blusa arregaçada, a nuca ardendo, o cabelo sendo erguido num coque malfeito, um ar de desaprovação pelo atraso do ônibus, centenas de pessoas cruzando-se e ninguém enxergando ninguém, ela enxuga a testa com a palma da mão, ajeita a sobrancelha com os dedos. Perfeita.
Saindo do banho, a toalha abandonada no chão, o corpo ainda úmido, as mãos desembaçando o espelho, creme hidratante nas pernas, desodorante, um último minuto de relaxamento, há um dia inteiro pra percorrer e assim que a porta do banheiro for aberta já não será mais dona de si mesma. Escovar os dentes, cuspir, enxugar a boca, respirar fundo. Espetacular.
Dentro do teatro, as luzes apagadas, o riso solto, escancarado, as mãos aplaudindo em cena aberta, sem comandos, seu tronco deslocando-se quando uma fala surpreende, gargalhada que não se constrange, não obedece à adequação, gengiva à mostra, seu ombro encostado no ombro ao lado, ambos voltados pra frente, a mão tapando a boca num breve acesso de timidez por tanta alegria. Um sonho.
O carro estacionado às pressas numa rua desconhecida, uma necessidade urgente de chorar por causa de uma música ou de uma lembrança, a cabeça jogada sobre o volante, as lágrimas quentes, fartas, um lenço de papel catado na bolsa, o nariz sendo assoado, os dedos limpando as pálpebras, o retrovisor acusando os olhos vermelhos e mesmo assim servindo de amparo, estou aqui com você, só eu estou te vendo. Encantadora.

Publicada em Coisas da Vida (2005), "Bonitas mesmo" é uma crônica inspiradora de Martha Medeiros (1961), uma escritora e poeta contemporânea que nasceu em Porto Alegre.

Com um olhar atento e crítico, o texto começa por apontar e comentar as pressões estéticas a que as mulheres estão sujeitas e as diversas cobranças que existem em torno da sua aparência.

Apresentando sua definição da verdadeira beleza, a autora se distancia das imposições sociais e dos padrões redutores. Segundo ela, somos ainda mais bonitas quando estamos confortáveis, quando nem estamos nos preocupando com isso.

Observando e enaltecendo os gestos cotidianos e os atos mais comuns, a autora traça um elogio ao poder feminino que existe em todas nós e vai muito além da imagem de cada uma.

7. Outro de Elevador, Luís Fernando Veríssimo

"Ascende" dizia o ascensorista. Depois: "Eleva-se". "Para cima". "Para o alto". "Escalando". Quando perguntavam "Sobe ou desce?" respondia "A primeira alternativa". Depois dizia "Descende", "Ruma para baixo", "Cai controladamente", "A segunda alternativa"... "Gosto de improvisar", justificava-se. Mas como toda arte tende para o excesso, chegou ao preciosismo. Quando perguntavam "Sobe?" respondia "É o que veremos..." ou então "Como a Virgem Maria". Desce? "Dei" Nem todo o mundo compreendia, mas alguns o instigavam. Quando comentavam que devia ser uma chatice trabalhar em elevador ele não respondia "tem seus altos e baixos", como esperavam, respondia, criticamente, que era melhor do que trabalhar em escada, ou que não se importava embora o seu sonho fosse, um dia, comandar alguma coisa que andasse para os lados... E quando ele perdeu o emprego porque substituíram o elevador antigo do prédio por um moderno, automático, daqueles que têm música ambiental, disse: "Era só me pedirem ― eu também canto!"

Esse é um exemplo de crônica que mostra uma atividade rotineira e monótona de trabalho e todo o esforço do funcionário para transformá-la em algo mais prazeroso e criativo.

O ascensorista não gostava das tarefas que realizava, e provavelmente seria mais feliz em outro tipo de serviço. Entretanto, quando é demitido, ele se ressente e afirma que poderia ter se esforçado ainda mais.

O autor consegue nesse pequeno texto trazer de forma bem-humorada questões sérias como a motivação na vida e o mercado de trabalho.

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Laura Aidar
Revisão por Laura Aidar
Arte-educadora, artista visual e fotógrafa. Licenciada em Educação Artística pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e formada em Fotografia pela Escola Panamericana de Arte e Design.
Carolina Marcello
Edição por Carolina Marcello
Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes e licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Apaixonada por leitura e escrita, produz conteúdos on-line desde 2017, sobre literatura, cultura e outros campos do saber.