Discurso I Have a Dream, de Martin Luther King: análise e significado


Rebeca Fuks
Revisão por Rebeca Fuks
Doutora em Estudos da Cultura

O discurso I Have a Dream (em português Eu Tenho um Sonho), é um discurso emblemático da autoria de Martin Luther King, que foi essencial no movimento dos direitos civis dos Estados Unidos da América.

Considerado por muitos um dos melhores discursos de todos os tempos, as palavras foram proferidas nos degraus do Lincoln Memorial, em Washington DC (nos Estados Unidos) no dia 28 de agosto de 1963.

Com a sua excelente oratória, o Dr. Martin Luther King teve como objetivo encorajar a nova geração a eliminar o racismo, criando uma sociedade melhor para o futuro. Além disso, também foram mencionados passos que deveriam ser seguidos para alcançar a igualdade racial.

Discurso I Have a Dream completo e legendado

Resumo

Neste discurso, o Dr. King mencionou um documento importante para a história dos Estados Unidos: a Proclamação de Emancipação, que declarou a libertação dos escravos.

O discursante referiu que, apesar desta proclamação ter sido assinada pelo Presidente Abraham Lincoln cem anos antes, a sociedade atual ainda tinha atitudes discriminatórias em relação a indivíduos afrodescendentes.

De igual forma, a Declaração de Independência também é incluída no discurso, com a indicação de que nela estão algumas promessas que ainda não foram cumpridas, pois indica que todas as pessoas são criadas de forma igual e devem ter as mesmas oportunidades.

Análise e significado do discurso

Eu estou contente em unir-me com vocês no dia que entrará para a história como a maior demonstração pela liberdade na história de nossa nação.

Estas palavras foram confirmadas, porque o dia em que ocorreu este discurso, 28 de agosto de 1963, entrou para a história.

Isso aconteceu não apenas porque o discurso foi considerado como o melhor discurso do século XX, mas também porque esta manifestação a favor dos direitos humanos foi uma das maiores da história dos Estados Unidos.

Há cem anos, um grande americano, sob cuja simbólica sombra nos encontramos, assinava a Proclamação da Emancipação. Esse momentos o decreto foi como um raio de luz de esperança para milhões de escravos negros que tinham sido marcados a ferro nas chamas de vergonhosa injustiça. Veio como uma aurora feliz para terminar a longa noite do cativeiro.

Mas, cem anos mais tarde, devemos enfrentar a realidade trágica de que o Negro ainda não é livre. Cem anos mais tarde, a vida do Negro é ainda lamentavelmente dilacerada pelas algemas da segregação e pelas correntes da discriminação.

Cem anos mais tarde, o Negro continua vivendo numa ilha isolada de pobreza, em meio a um vasto oceano de prosperidade material. Cem anos mais tarde, o Negro ainda definha à margem da sociedade americana, encontrando-se no exílio em sua própria pátria. Assim, encontramo-nos aqui hoje para dramatizarmos tal consternadora condição.

Martin Luther King se refere ao famoso ex-presidente Abraham Lincoln, que neste local tem uma estátua com mais de 9 metros. Assim, a sombra a que se refere é simbólica, mas também literal.

A Proclamação de Emancipação foi assinada por Abraham Lincoln no dia 1 de janeiro de 1863 e proclamava a libertação dos escravos, apesar disso não ter acontecido imediatamente.

O discursante explica que, depois de 100 anos, os indivíduos negros ainda não tinham recebido o benefício que esse documento deveria ter dado.

É mencionado que a sociedade americana era bastante discriminatória e os indivíduos negros não eram tratados com igualdade:

Em um sentido viemos à capital de nossa nação para descontar um cheque. Quando os arquitetos de nossa República escreveram as palavras majestosas da Constituição e da Declaração de Independência, estavam assinando uma nota promissória da qual cada cidadão americano seria herdeiro.

Essa nota foi uma promessa de que todos os homens teriam garantidos seus inalienáveis direitos à vida, à liberdade e à busca da felicidade.

A manifestação é descrita como o ato metafórico de descontar um cheque, ou seja, cobrar à sociedade aquilo que a Constituição e a Declaração da Independência prometem.

Os arquitetos da República neste caso são: John Adams, Benjamin Franklin, Alexander Hamilton, John Jay, Thomas Jefferson, James Madison e George Washington.

Martin Luther King introduz no seu discurso documentos importantes que constituem a fundação dos Estados Unidos como nação.

Existe algo, porém, que devo dizer ao meu povo que se encontra no caloroso limiar que conduz ao palácio da justiça. No processo de ganharmos nosso lugar de direito não devemos ser culpáveis de atos irregulares.

Não busquemos satisfazer a sede pela liberdade tomando da taça da amargura e do ódio. Devemos conduzir sempre nossa luta no plano elevado da dignidade e disciplina. Não devemos deixar que nosso criativo protesto degenere em violência física.

Sempre e cada vez mais devemos nos erguer às alturas majestosas de enfrentar a força física com a força da alma. Esta maravilhosamente nova militância que engolfou a comunidade negra não deve nos levar a uma desconfiança de todas as pessoas brancas, pois muitos de nossos irmãos brancos, como evidenciado por sua presença aqui, hoje, estão conscientes de que seus destinos estão ligados ao nosso destino, e que sua liberdade está intrinsecamente unida à nossa liberdade. Não podemos caminhar sozinhos.

Assim como Gandhi, Martin Luther King propunha uma atitude de desobediência civil, ou seja, sem recurso à violência.

Ele achou importante acrescentar esta parte para se diferenciar de outros grupos de resistência que adotaram uma postura mais agressiva. Malcolm X e a Nação do Islã, por exemplo, acreditavam que todos os meios eram lícitos para combater a discriminação e as agressões vividas naquela época.

À medida que caminhamos, devemos assumir o compromisso de marcharmos avante. Não podemos retroceder.

Existem aqueles que estão perguntando aos devotados aos direitos civis: "Quando vocês ficarão satisfeitos?". Não podemos ficar satisfeitos enquanto o Negro for vítima dos horrores incontáveis da brutalidade policial.

Não podemos ficar satisfeitos enquanto nossos corpos, pesados pela fadiga da viagem, não puder encontrar um lugar de descanso nos motéis das estradas e nos hotéis das cidades. Não podemos ficar satisfeitos enquanto a nobreza básica do Negro passa de um gueto pequeno para um maior.

Não podemos jamais ficar satisfeitos enquanto um Negro no Mississipi não pode votar e um Negro em Nova York crê não existir nada pelo qual votar. Não, não, não estamos satisfeitos, e não ficaremos satisfeitos até que a justiça corra como água e a retidão também, como uma poderosa correnteza.

Em várias marchas e campanhas organizadas, ocorreram manifestações de brutalidade policial. Além disso, a sociedade estava altamente segregada e os cidadãos negros eram considerados por muitos como pertencendo a uma classe inferior.

Muitos locais eram exclusivos para as pessoas brancas e existiam sinais que comprovavam isso. Indivíduos negros tinham poucas possibilidades de melhorar o seu nível de vida, de morar em lugares melhores, porque não tinham as mesmas oportunidades.

Em alguns lugares, os negros não tinham direito de votar e nos lugarem em que tinham esse direito, a discriminação era tanta que os indivíduos sentiam que o seu voto não tinha qualquer impacto.

Alguns Estados impediam afrodescendentes de entrar no cinema, de comer no balcão de um restaurante, de usar um bebedouro ou até de se acomodar em um hotel ou motel.

Não desconheço que alguns de vocês vieram aqui após muitas dificuldades e tribulações. Alguns de vocês recém saíram de diminutas celas de prisão. Alguns de vocês vieram de áreas onde sua busca pela liberdade deixou em vocês marcas das tempestades de perseguição e fê-los tremerem pelos ventos da brutalidade policial. Vocês são veteranos do sofrimento criativo. Continuem a trabalhar com a fé de que um sofrimento imerecido é redentor.

Voltem ao Mississipi, voltem ao Alabama, voltem à Carolina do Sul, voltem à Geórgia, voltem à Louisiana, voltem às favelas e aos guetos de nossas modernas cidades, sabendo que, de alguma forma, esta situação pode e será alterada. Não nos arrastemos no vale do desespero.

Martin Luther King tinha noção que muitas pessoas se encontravam naquela manifestação completamente sem esperança e prontas para desistir porque já tinham passado por situações dramáticas.

Mas ele as encorajou, dizendo que o sofrimento delas seria acompanhado de redenção e que poderiam voltar para os seus lares com confiança que esta situação desfavorável seria alterada. E este discurso ajudou a mudar esta situação.

Tenho um sonho que algum dia esta nação se levantará e viverá o verdadeiro significado da sua crença. "Afirmamos que estas verdades são evidentes; que todos os homens foram criados iguais".

Esta frase é da autoria de Thomas Jefferson e se encontra na Declaração de Independência.

Ao fazer esta citação, Martin Luther King pretende chamar a atenção para o fato de que a sociedade americana não estava vivendo de acordo com essa afirmação e que muitas pessoas sofriam com a desigualdade e com a discriminação.

Tenho um sonho que algum dia nas montanhas rubras da Geórgia os filhos de antigos escravos e os filhos de antigos donos de escravos poderão sentar-se à mesa da fraternidade.

Martin Luther King nasceu no Estado da Geórgia, que é bastante conhecido pelo solo vermelho (com argila), e onde várias pessoas possuíam escravos.

Tenho um sonho que algum dia o Estado do Mississipi, um Estado sufocado pelo calor da injustiça e opressão, será transformado num oásis de liberdade e justiça.

Além de ser um Estado muito quente no âmbito da temperatura, Martin Luther King faz uma associação com o calor da injustiça porque naquela altura o Mississipi era um dos Estados mais racistas.

Tenho um sonho que meus quatro pequenos filhos viverão um dia em uma nação onde não serão julgados pela cor de sua pele, mas pelo conteúdo de seu caráter. Tenho um sonho hoje.

Esta afirmação é provavelmente a mais famosa de todo o discurso.

Martin Luther King teve quatro filhos: Yolanda, Dexter, Martin e Bernice. O sonho que é revelado neste discurso tinha em vista uma mudança na sociedade para o benefício das gerações futuras, onde estão incluídos os filhos de Martin Luther King.

Tenho um sonho que algum dia o Estado de Alabama, onde existem racistas maldosos e onde os lábios do governador pronunciam palavras de interposição e nulificação, um dia lá no Alabama meninos negros e meninas negras poderão unir as mãos com meninos brancos e meninas brancas, como irmãos e irmãs. Tenho um sonho hoje.

O Governador do Estado do Alabama na época era George Wallace, um reconhecido encorajador da segregação entre raças e feroz opositor do movimento dos direitos civis.

Tenho um sonho que um dia todo vale será exaltado, todas as colinas e montanhas serão niveladas, os lugares acidentados se tornarão planos e os lugares tortuosos serão endireitados e a glória do Senhor será revelada e todos os seres a verão, juntamente.

Martin Luther King era cristão, tendo sido pastor de uma Igreja Batista. Assim, esta parte do seu discurso é baseada na passagem bíblica que se encontra em Isaías 40:4-5.

Esta é nossa esperança. Esta é a fé com a qual regresso ao sul. Com esta fé seremos capazes de extrair da montanha do desespero uma pedra de esperança. Com esta fé poderemos transformar as dissonantes discórdias da nossa nação em uma linda sinfonia de irmandade. Com esta fé poderemos trabalhar juntos, orar juntos, lutar juntos, ir para a prisão juntos, defender a liberdade juntos, sabendo que algum dia seremos livres.

A fé, um tema muito importante na vida cristã, é mencionado também neste discurso.

Martin Luther King tinha convicção que, mesmo no meio desta situação difícil, era possível ter esperança num futuro melhor, e que a fé poderia unir as pessoas e ajudá-las a conquistar a liberdade.

Esse será o dia quando todos os filhos de Deus poderão cantar com um novo significado: "Meu país é teu, doce terra de liberdade, de ti eu canto. Terra onde morreram meus pais, terra do orgulho dos peregrinos, de cada montanha que ressoe a liberdade".

Neste momento, o discursante menciona uma conhecida canção patriótica intitulada My Country 'Tis of Thee, que fala sobre ideais americanos como a liberdade.

Martin Luther King quer dizer que os valores mencionados nessa canção ainda não eram vividos na plenitude naquela sociedade.

E se a América for destinada a ser uma grande nação isto deve se tornar realidade. Que a liberdade ressoe nestes prodigiosos planaltos de New Hampshire. Que a liberdade ressoe nestas poderosas montanhas de New York. Que a liberdade ressoe nos elevados Alleghenies da Pensilvânia!

Que a liberdade ressoe nos nevados cumes das montanhas Rockies do Colorado!

Que a liberdade ressoe nas encostas curvas da Califórnia!

Não somente isso; que a liberdade ressoe na Montanha de Pedra da Geórgia!

Que a liberdade ressoe na Montanha Lookout do Tennessee!

Que a liberdade ressoe em cada colina e cada pequena elevação do Mississipi.

De cada lado da montanha, que a liberdade ressoe.

Martin Luther King continua usando a noção de "ressoar da liberdade" que faz parte da canção patriótica mencionada anteriormente.

Neste momento, são mencionados vários elementos naturais dos Estados Unidos, expressando a importância de ver a liberdade a ser vivida em todo o país.

Quando isto acontecer, quando permitirmos que a liberdade ressoe, quando a deixarmos ressoar em cada vila e cada aldeia, em cada Estado e cada cidade, seremos capazes de apressar o dia quando todos os filhos de Deus, negros e brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, com certeza poderão dar as mãos e cantar nas palavras da antiga canção negra: "Finalmente livres! Finalmente livres! Louvado seja Deus, Todo-Poderoso, estamos livres, finalmente!"

O discurso termina com uma referência a uma canção tradicional negra que expressa a importância da liberdade para as pessoas de todas as classes, raças e religiões.

Contexto histórico e social

O discurso I Have a Dream foi feito durante uma manifestação em Washington DC, que reuniu mais de 250 mil pessoas.

Naquela época, os Estados Unidos viviam um forte clima de discriminação racial, que era mais forte em alguns Estados do Sul.

Martin Luther King ficou conhecido por lutar contra a desigualdade na sociedade, usando meios de resistência passiva e sem violência, ao contrário de alguns outros personagens, como Malcom X.

Um ano depois deste discurso, em 1964, Martin Luther King ganhou o Prêmio Nobel da Paz, sendo na altura a pessoa mais jovem a receber este galardão. Ele tinha apenas 35 anos de idade.

Em 1968, o Dr. Martin Luther King foi assassinado na varanda do hotel onde estava hospedado.

Mesmo depois da sua morte, a sua influência se manteve e Martin Luther King é visto como um dos maiores porta-vozes dos direitos civis de todos os tempos. O discurso I Have a Dream é um dos mais conhecidos e citados no âmbito da luta contra o racismo e discriminação.

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Rebeca Fuks
Revisão por Rebeca Fuks
Formada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2010), mestre em Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2013) e doutora em Estudos de Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e pela Universidade Católica Portuguesa de Lisboa (2018).