9 poemas encantadores de Adélia Prado analisados e comentados


Rebeca Fuks
Rebeca Fuks
Doutora em Estudos da Cultura

A escritora mineira Adélia Prado publicou o seu primeiro livro aos 40 anos. Intitulado Bagagem (1976), essa primeira publicação foi apadrinhada por Carlos Drummond de Andrade que, além de elogiar a autora estreante, enviou a série de poemas para a Editora Imago.

Assim que foi lançado, o livro chamou a atenção da crítica especializada e Adélia passou a ser vista com bons olhos. De lá para cá, a poeta vem publicando com certa regularidade, tendo se tornado um dos grandes nomes da poesia brasileira.

Dona de um estilo muitas vezes caracterizado como um romantismo crítico, Adélia Prado usa em seus poemas uma linguagem coloquial e pretende transmitir para o leitor novos pontos de vista sobre o cotidiano, muitas vezes o ressignificando.

1. Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem.

Mulher é desdobrável. Eu sou.

Inserido em Bagagem, seu livro de estreia, Com licença poética é o poema que inaugura a obra e faz uma espécie de apresentação da autora até então desconhecida do grande público.

Os versos tecem uma clara referência (e homenagem) ao Poema de sete faces, de Carlos Drummond de Andrade. O poeta, aliás, foi de suma importância na carreira de Adélia. Drummond não só foi material de inspiração poética como ajudou a escritora mineira nos primeiros tempos da sua carreira, indicando o seu livro a um editor que veio a publica-la.

Encontramos nos versos acima um tom de oralidade, marcado pela informalidade e pelo desejo de proximidade com o leitor. É como se o eu-lírico generosamente se oferecesse ao leitor, entregando as suas qualidades e defeitos sob a forma de verso. No poema vemos também a questão do que significa ser mulher na sociedade brasileira sendo sublinhandas as dificuldades que o gênero costuma enfrentar.

2. Alfândega

O que pude oferecer sem mácula foi
meu choro por beleza ou cansaço,
um dente exraizado,
o preconceito favorável a todas as formas
do barroco na música e o Rio de Janeiro
que visitei uma vez e me deixou suspensa.
‘Não serve’, disseram. E exigiram
a língua estrangeira que não aprendi,
o registro do meu diploma extraviado
no Ministério da Educação, mais taxa sobre vaidade
nas formas aparente, inusitada e capciosa — no que
estavam certos — porém dá-se que inusitados e capciosos
foram seus modos de detectar vaidades.
Todas as vezes que eu pedia desculpas diziam:
‘Faz-se de educado e humilde, por presunção’,
e oneravam os impostos, sendo que o navio partiu
enquanto nos confundíamos.
Quando agarrei meu dente e minha viagem ao Rio,
pronto a chorar de cansaço, consumaram:
‘Fica o bem de raiz pra pagar a fiança’.
Deixei meu dente.
Agora só tenho três reféns sem mácula.

Alfândega é um título de poema bastante interessante e compatível com a escolha da poeta se pensarmos no livro em que está inserido: Bagagem. Ambas as palavras pressupõe a presença de um eu-lírico em trânsito, que se desloca, que leva consigo apenas aquelas coisas que considera essenciais.

É na alfândega que habitualmente os viajantes declaram os bens físicos que pretendem carregar, no entanto, o que o eu-lírico oferece nesse momento da sua viagem são sentimentos, impressões, lembranças, subjetividades.

As sensações parecem elencadas ao acaso, movidas por um fluxo de consciência que traz à tona emoções ao acaso. Ao final do poema o sujeito poético chega a uma conclusão inusitada: ele deixa para trás um dos bens (o dente) para poder seguir adiante.

3. Momento

Enquanto eu fiquei alegre,
permaneceram um bule azul com um descascado no bico,
uma garrafa de pimenta pelo meio,
um latido e um céu limpidíssimo
com recém-feitas estrelas.
Resistiram nos seu lugares, em seus ofícios,
constituindo o mundo pra mim, anteparo
para o que foi um acometimento:
súbito é bom ter um corpo pra rir
e sacudir a cabeça. A vida é mais tempo
alegre do que triste. Melhor é ser.

O poema acima trata da transitoriedade do tempo, do correr da vida e de como se deve escolher leva-la.

Para ilustrar as várias fases da existência, o eu-lírico faz uso de imagens simbólicas como o bule azul descascado e a garrafa de pimenta pelo meio. As duas imagens sublinham o processo de desgaste e uso inerente à vida.

Alinhado com os objetos estão signos aleatórios como o latido de um cão e um céu limpo, itens que ocupam espaço no nosso cotidiano repetitivo.

Após essa justaposição de matérias e afetos, o eu-lírico conclui o poema de uma maneira positiva e com um tom otimista, destacando o corpo que ri e a alegria que vence a tristeza.

4. A formalística

O poeta cerebral tomou café sem açúcar
e foi pro gabinete concentrar-se.
Seu lápis é um bisturi
que ele afia na pedra,
na pedra calcinada das palavras,
imagem que elegeu porque ama a dificuldade,
o efeito respeitoso que produz
seu trato com o dicionário.
Faz três horas que já estuma as musas.
O dia arde. Seu prepúcio coça.

Os versos acima fazem parte de um poema mais extenso, que tece uma crítica a determinado tipo de poeta descolado da realidade, preocupado com escolas, movimentos literários, normas e fórmulas. Trata-se de um poeta cerebral, focado no racional e na precisão.

A formalística possui um tom de provocação e ironia, ao longo desses primeiros versos encontramos já uma pequena amostra do tipo de composição que Adélia repudia e contra que gênero de poética ela combate.

Adélia Prado conduz a sua poética no sentido contrário ao personagem poeta mencionado: a sua lírica é baseada na simplicidade, na experiência do vivido, no cotidiano e na informalidade.

Encontramos aqui o exemplo de um meta-poema, isso é, versos que pensam a sua própria condição. A poeta tem uma série de versos escritos no sentido da reflexão sobre o próprio fazer literário. Ao longo da sua carreira literária Adélia investiu também na construção de uma investigação mais profunda sobre o papel da linguagem.

5. Fragmento

Bem-aventurado o que pressentiu
quando a manhã começou:
não vai ser diferente da noite.
Prolongados permanecerão o corpo sem pouso,
o pensamento dividido entre deitar-se primeiro
à esquerda ou à direita
e mesmo assim anunciou o paciente ao meio-dia:
algumas horas e já anoitece, o mormaço abranda,
um vento bom entra nessa janela.

O poema se inicia com a indiferenciação do dia e da noite e com o elogio aquele que teve sensibilidade para perceber quando o sol nasceu.

Há uma série de conflitos presentes nos versos: o tempo que passa e não passa, a noite que chega e não chega, o corpo que quer se movimentar mas afinal está em repouso, o pensamento inquieto com a posição do deitar.

Não sabemos quem é o paciente em questão que faz o anúncio da passagem das horas, mas podemos concluir que, apesar das angústias, o poema se encerra de uma maneira solar. Apesar das dicotomias apresentadas em Fragmento, o leitor termina a leitura apaziguado pela presença da brisa agradável que entra pela janela.

6. Casamento

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como “este foi difícil”
“prateou no ar dando rabanadas”
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Casamento narra a história de um casal aparentemente maduro, sereno, estável, que experimenta um amor tranquilo e sem sobressaltos.

O eu-lírico enfatiza o seu desejo de cuidar do parceiro e de estar ao seu lado, ainda que isso implique muitas vezes sair da sua zona de conforto. Ela levanta-se a meio da noite para estar junto dele na cozinha enquanto os dois, juntos, preparam a refeição do dia a seguir. Tudo acontece com profunda naturalidade. A relação de longo prazo se baseia nesses pequenos gestos de companheirismo cotidiano.

O casal partilha o silêncio e cada um dos membros parece confortavelmente acolhido na presença do parceiro.

7. Dona Doida

Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso
com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.

O belíssimo poema se inicia com a narração de uma cena aparentemente banal, vivenciada no passado, na companhia da mãe. É de uma situação concreta - a princípio uma experiência do vivido - que surge uma reflexão mais ampla sobre a vida.

A repetição do cenário do lado de fora (a chuva forte) faz com que se estabeleça uma espécie de máquina do tempo. A mãe, tal qual uma poetisa, faz a sua escolha: enquanto a poeta escolhe as palavras a mãe vai a procura dos ingredientes para a receita. A menina sai para buscar os ingredientes e retorna à casa trinta anos mais tarde. Já não está lá a mãe e no lugar dela encontra a sua própria família.

Os versos se focam, portanto, na questão da memória e da relação do sujeito lírico com o tempo e com os familiares (estejam eles vivos ou mortos). As palavras recuperam o passado e fazem com que o eu-lírico experimente um tempo que mescla o ontem, o hoje e o amanhã.

8. Um jeito

Meu amor é assim, sem nenhum pudor.
Quando aperta eu grito da janela
— ouve quem estiver passando —
ô fulano, vem depressa.
Tem urgência, medo de encanto quebrado,
é duro como osso duro.
Ideal eu tenho de amar como quem diz coisas:
quero é dormir com você, alisar seu cabelo,
espremer de suas costas as montanhas pequenininhas
de matéria branca. Por hora dou é grito e susto.
Pouca gente gosta.

Um jeito é mais um exemplar da lírica amorosa de Adélia Prado. Ao longo dos versos o eu-lírico vai transparecendo a sua forma de amar: urgente, repleta de desejo e pressa, um jeito de amar que não se contém.

Para ilustrar o modo de amar ideal do sujeito poético ele se refere a exemplos práticos e cotidianos: a partilha da cama, o cafuné no cabelo, a mania de espremer as espinhas das costas do amado.

Os versos diferenciam as duas formas de amar: a que o eu-lírico sente e a que ele gostaria de sentir. O que ele almejava era um amor sossegado, pleno de segurança, estabilidade e afeto, o que ele sente, por sua vez, é um amor afoito, desengonçado e afobado.

9. Janela

Janela, palavra linda.
Janela é o bater das asas da borboleta amarela.
Abre pra fora as duas folhas de madeira à-toa pintada,
janela jeca, de azul.
Eu pulo você pra dentro e pra fora, monto a cavalo em você,
meu pé esbarra no chão. Janela sobre o mundo aberta, por onde vi
o casamento da Anita esperando neném, a mãe
do Pedro Cisterna urinando na chuva, por onde vi
meu bem chegar de bicicleta e dizer a meu pai:
minhas intenções com sua filha são as melhores possíveis.
Ô janela com tramela, brincadeira de ladrão,
claraboia na minha alma,
olho no meu coração.

A janela é um objeto poético extremamente interessante: divide o lado de dentro do lado de fora e, ao mesmo tempo, permite que esses dois universos se vejam.

A janela é também um lugar de onde se assiste o mundo: vê-se quem fica e quem vai embora, acompanha-se as fases da vida dos conhecidos. É da janela que o eu-lírico registra inclusive momentos importantes da sua própria vida (a chegada do amado e o pedido de casamento).

Os versos cunhados por Adélia Prado são um elogio a esse objeto cotidiano que tantas vezes passa despercebido. O tom da lírica é solar, otimista, positivo. Ao celebrar a janela o sujeito poético, de certa forma, também celebra a vida.

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Rebeca Fuks
Rebeca Fuks
Formada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2010), mestre em Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2013) e doutora em Estudos de Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e pela Universidade Católica Portuguesa de Lisboa (2018).