15 melhores poemas de Manoel de Barros analisados e comentados
Manoel de Barros (1916-2014) foi um dos grandes poetas brasileiros. Com uma poética que celebra o miúdo e o singelo, sua obra é um mergulho no universo interior e nas belezas escondidas do cotidiano.
Descubra, a seguir, algumas de suas criações mais famosas.
1. Olhos parados
Olhar, reparar tudo em volta, sem a menor intenção de poesia.
Girar os braços, respirar o ar fresco, lembrar dos parentes.
Lembrar da casa da gente, das irmãs, dos irmãos e dos pais da gente.
Lembrar que estão longe e ter saudades deles…
Lembrar da cidade onde se nasceu, com inocência, e rir sozinho.
Rir de coisas passadas. Ter saudade da pureza.
Lembrar de músicas, de bailes, de namoradas que a gente já teve.
Lembrar de lugares que a gente já andou e de coisas que a gente já viu.
Lembrar de viagens que a gente já fez e de amigos que ficaram longe.
Lembrar dos amigos que estão próximos e das conversas com eles.
Saber que a gente tem amigos de fato!
Tirar uma folha de árvore, ir mastigando, sentir os ventos pelo rosto…
Sentir o sol. Gostar de ver as coisas todas.
Gostar de estar ali caminhando. Gostar de estar assim esquecido.
Gostar desse momento. Gostar dessa emoção tão cheia de riquezas íntimas.
Os versos acima foram retirados após a primeira passagem do extenso poema Olhos parados. Neles, o sujeito reflete sobre a vida, expressando gratidão pelas experiências vividas e pelos encontros felizes. Reconhece a beleza de estar vivo, pleno, e dá valor a essa completude.
Em Olhos parados seestabelece uma relação de cumplicidade entre o autor e os leitores, deixando que eles assistam esse instante íntimo de balanço da sua vida pessoal.
2. A borra
Prefiro as palavras obscuras que moram nos
fundos de uma cozinha — tipo borra, latas, cisco
Do que as palavras que moram nos sodalícios —
tipo excelência, conspícuo, majestade.
Também os meus alter egos são todos borra,
ciscos, pobres-diabos
Que poderiam morar nos fundos de uma cozinha
— tipo Bola Sete, Mário Pega Sapo, Maria Pelego
Preto etc.
Todos bêbedos ou bocós.
E todos condizentes com andrajos.
Um dia alguém me sugeriu que adotasse um
alter ego respeitável — tipo um príncipe, um
almirante, um senador.
Eu perguntei:
Mas quem ficará com os meus abismos se os
pobres-diabos não ficarem?
O título do poema já dá pistas sobre o que leremos a seguir: a borra é aquilo que sobra, o depósito que fica no fundo de um recipiente depois da preparação do líquido desejado (o café ou o vinho, por exemplo).
É a partir desse tipo de matéria-prima que o poeta cria os seus versos - com o que passa despercebido, o que parece dispensável, material com o qual ninguém se importa.
A borra é um poema autocentrado, com uma escrita dedicada à se debruçar sobre a própria escrita. O vocabulário cotidiano, acessível - assim como os exemplos que vão sendo elencados ao longo do texto - criam uma identificação imediata por parte do leitor.
3. Bocó
Quando o moço estava a catar caracóis e pedrinhas
na beira do rio até duas horas da tarde, ali
também Nhá Velina Cuê estava. A velha paraguaia
de ver aquele moço a catar caracóis na beira do
rio até duas horas da tarde, balançou a cabeça
de um lado para o outro ao gesto de quem estivesse
com pena do moço, e disse a palavra bocó. O moço
ouviu a palavra bocó e foi para casa correndo
a ver nos seus trinta e dois dicionários que coisa
era ser bocó. Achou cerca de nove expressões que
sugeriam símiles a tonto. E se riu de gostar. E
separou para ele os nove símiles. Tais: Bocó é
sempre alguém acrescentado de criança. Bocó é
uma exceção de árvore. Bocó é um que gosta de
conversar bobagens profundas com as águas. Bocó
é aquele que fala sempre com sotaque das suas
origens. É sempre alguém obscuro de mosca. É
alguém que constrói sua casa com pouco cisco.
É um que descobriu que as tardes fazem parte de
haver beleza nos pássaros. Bocó é aquele que
olhando para o chão enxerga um verme sendo-o.
Bocó é uma espécie de sânie com alvoradas. Foi
o que o moço colheu em seus trinta e dois
dicionários. E ele se estimou
Os versos acima são bastante característicos da lírica de Manoel de Barros. Aqui encontramos um olhar infantil sobre o mundo, como vemos no uso do termo moço, por exemplo, e no tom de ingenuidade.
É frequente também a importância dada aos elementos naturais na escrita (a pedrinha, o caracol, a árvore, o rio, os pássaros). Em Bocó, o sujeito demonstra, com simplicidade, ir descobrindo aos poucos as palavras e a linguagem.
A resolução do caso surge com um toque de humor: o sujeito correu as definições de "Bocó" nos seus trinta e dois dicionários antes de se admirar.
4. Poema
A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as
insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado e chorei.
Sou fraco para elogios.
Em Poema, Manoel de Barros reflete sobre a poesia e sobre si mesmo, revelando aspectos centrais de sua lírica. Em dez versos, ele explora as limitações do sujeito e valoriza o pequeno e o insignificante, compondo um olhar único sobre o mundo.
Chamado de "imbecil" por sua visão peculiar, ele transforma a ofensa em motivo de emoção, subvertendo expectativas com sensibilidade.
5. Uma didática da invenção
O rio que fazia uma volta
atrás da nossa casa
era a imagem de um vidro mole...
Passou um homem e disse:
Essa volta que o rio faz...
se chama enseada...
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro
que fazia uma volta atrás da casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.
No belíssimo Uma didática da invenção vemos como a palavra poética pode mudar a interpretação que construímos de uma paisagem. O poeta rejeita o termo técnico "enseada" para descrever o contorno de um rio, preferindo chamar-lhe "cobra de vidro", que transmite mais beleza e emoção.
Confira o vídeo do poeta Manoel de Barros lendo a composição:
6. Matéria de poesia
Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para poesiaO homem que possui um pente
e uma árvore serve para poesiaTerreno de 10 x 20, sujo de mato — os que
nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
servem para poesiaUm chevrolé gosmento
Coleção de besouros abstêmios
O bule de Braque sem boca
são bons para poesiaAs coisas que não levam a nada
têm grande importânciaCada coisa ordinária é um elemento de estima
Cada coisa sem préstimo tem seu lugar
na poesia ou na geral
Esse metapoema de Manoel de Barros fala sobre a composição do próprio poema, se debruça sobre a escolha das palavras e sobre o processo de criação literária.
Ao explicar para o leitor o que deve ser material de escrita, vai descobrindo que a poesia é a arte daquilo que não tem propriamente valor (em resumo, segundo o próprio poema, é o que pode ser disputado no cuspe a distância).
Elementos cotidianos, como um carro, um bule ou um besouro, são elevados à condição de matéria-prima poética, reforçando a ideia de que o banal contém potencial criativo inesgotável.
7. Biografia do orvalho
A maior riqueza do homem é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou — eu não
aceito.
Não aguento ser apenas um sujeito que abre
portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que
compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora,
que aponta lápis, que vê a uva etc. etc.
Perdoai.
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.
O poema Biografia de um Orvalho explora a inquietação do sujeito poético diante do cotidiano. Ele rejeita a previsibilidade da vida comum e busca experimentar novas perspectivas, reinventando-se constantemente.
Essa necessidade de transformação reflete-se na criação de uma linguagem própria, como no verso final: "Eu penso renovar o homem usando borboletas", uma expressão que transcende a razão e se conecta com os afetos.
8. Deus disse
Deus disse: Vou ajeitar a você um dom:
Vou pertencer você para uma árvore.
E pertenceu-me.
Escuto o perfume dos rios.
Sei que a voz das águas tem sotaque azul.
Sei botar cílio nos silêncios.
Para encontrar o azul eu uso pássaros.
Só não desejo cair em sensatez.
Não quero a boa razão das coisas.
Quero o feitiço das palavras.
Manoel de Barros revela uma espiritualidade conectada à natureza, sentindo-se parte das árvores, rios e pássaros. O eu lírico sugere que Deus lhe deu o "dom" de ser parte integrante da vida orgânica, com admiração e pertencimento.
Ele transforma conceitos abstratos, como o silêncio, em imagens poéticas que despertam emoções mais do que explicações racionais.
9. Livro sobre nada
É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.
•
Tudo que não invento é falso.
•
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.
•
Tem mais presença em mim o que me falta.
•
Melhor jeito que achei para me conhecer foi fazendo o contrário.
Os cinco versos acima compõem um trecho do Livro sobre nada. São pílulas de sabedoria do poeta do interior, que propõe um conhecimento concentrado e fragmentado.
As pequenas frases, mesmo sucintas e desconexas, inquietam e convidam a pensar. Com um aparante véu de simplicidade, surgem reflexões filosóficas profundas.
10. O fazedor de amanhecer
Sou leso em tratagens com máquina.
Tenho desapetite para inventar coisas prestáveis.
Em toda a minha vida só engenhei
3 máquinas
Como sejam:
Uma pequena manivela para pegar no sono.
Um fazedor de amanhecer
para usamentos de poetas
E um platinado de mandioca para o
fordeco de meu irmão.
Cheguei de ganhar um prêmio das indústrias
automobilísticas pelo Platinado de Mandioca.
Fui aclamado de idiota pela maioria
das autoridades na entrega do prêmio.
Pelo que fiquei um tanto soberbo.
E a glória entronizou-se para sempre
em minha existência.
Em O fazedor de amanhecer lemos a arte de inventar máquinas que não existem, para propósitos não objetivos, desafiando o mundo lógico. Nos versos acima, somos desafiados a experimentar o mundo de outra maneira, a partir da ordem do sentido.
O sujeito, um inventor de mãos cheias, cria máquinas que não são compreensíveis do ponto de vista utilitário, como estamos habituados a conceber na sociedade. As suas maquinarias inventadas procuram atender necessidades abstratas.
11. Os caramujos-flores
Os caramujos-flores são um ramo de caramujos que
só saem de noite para passear
De preferência procuram paredes sujas onde se
pregam e se pastam
Não sabemos ao certo, aliás, se pastam eles
essas paredes ou se são por elas pastados
Provavelmente se compensem
Paredes e caramujos se entendem por devaneios
Difícil imaginar uma devoração mútua
Antes diria que usam de uma transubstanciação:
paredes emprestam seu musgo aos caramujos-flores
e os caramujos-flores às paredes sua gosma
Assim desabrocham como os bestegos
O poema que tem como protagonistas os caramujos-flores fala danaturezae brinca com a composição da linguagem, duas vertentes características da lírica de Manoel de Barros.
Nele, o autor joga com diferentes pontos de vista: são os caramujos que pastam na parede ou é a parede que é pastada pelo caramujo?.
O encontro entre esses dois elementos, aliás, compõe o núcleo central do poema. Parece que a parede e o caramujo são elementos em perfeita harmonia, complementares e indissociáveis.
12. Na enseada de Botafogo
Como estou só: Afago casas tortas,
Falo com o mar na rua suja…
Nu e liberto levo o vento
No ombro de losangos amarelos.Ser menino aos trinta anos, que desgraça
Nesta borda de mar de Botafogo!
Que vontade de chorar pelos mendigos!
Que vontade de voltar para a fazenda!Por que deixam um menino que é do mato
Amar o mar com tanta violência?
Com uma escrita autobiográfica, Manoel de Barros cristalizou em versos muitas das suas experiências pessoais. Esse parece ser o caso do poema Na enseada de Botafogo, onde um sujeito do interior parece encantado com a paisagem do litoral carioca.
Os versos acima, no entanto, retratam a angústia de alguém dividido: que mantém o afeto pela sua terra natal ao mesmo tempo que se mostra encantado pela paisagem carioca. Entre a fartura da fazenda e a vontade de chorar pelos mendigos, perdido, se pergunta como é capaz de amar com tanta força o oceano.
13. O fotógrafo
Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na
pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim eu enxerguei a ‘Nuvem de calça’.
Representou para mim que ela andava na aldeia de
braços com Maiakowski – seu criador.
Fotografei a ‘Nuvem de calça’ e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa
mais justa para cobrir a sua noiva.
A foto saiu legal.
Esse poema está no livro Ensaios fotográficos. Com um título sucinto, resume a atividade do eu lírico: O fotógrafo. Mas, para a nossa surpresa, logo nos primeiros versos observamos que o conceito que temos de fotógrafo não se aplica propriamente ao que o sujeito poético pretende registrar.
Manoel de Barros ressignifica o conceito da atividade fotográfica. Apesar de querer eternizar uma imagem, a vivência daquela circunstância transcende todo e qualquer registro, e ele devaneia.
O final do poema, inesperado, parece naturalizar toda a viagem imagética e conceitual que se passou nos versos anteriores.
14. Um songo
Aquele homem falava com as árvores e com as águas
ao jeito que namorasse.
Todos os dias
ele arrumava as tardes para os lírios dormirem.
Usava um velho regador para molhar todas as
manhãs os rios e as árvores da beira.
Dizia que era abençoado pelas rãs e pelos
pássaros.
A gente acreditava por alto.
Assistira certa vez um caracol vegetar-se
na pedra.
mas não levou susto.
Porque estudara antes sobre os fósseis lingüísticos
e nesses estudos encontrou muitas vezes caracóis
vegetados em pedras.
Era muito encontrável isso naquele tempo.
Ate pedra criava rabo!
A natureza era inocente.
Um songo faz parte da obra A biblioteca de Manoel de Barros e fala sobre um sujeito específico, não nomeado, que tinha uma maneira de enxergar o mundo - e interagir com ele - de uma forma diferente.
A sua relação com a natureza e a linguagem reinventada são características típicas da lírica de Manoel de Barros que estão bastante presentes nos versos acima.
15. De passarinhos
Para compor um tratado de passarinhos
É preciso por primeiro que haja um rio com árvores
e palmeiras nas margens.
E dentro dos quintais das casas que haja pelo menos
goiabeiras.
E que haja por perto brejos e iguarias de brejos.
É preciso que haja insetos para os passarinhos.
Insetos de pau sobretudo que são os mais palatáveis.
A presença de libélulas seria uma boa.
O azul é muito importante na vida dos passarinhos
Porque os passarinhos precisam antes de belos ser
eternos.
Eternos que nem uma fuga de Bach.
A natureza é quase sempre o ponto central na poesia de Manoel de Barros. Em De passarinhos, o poeta lista várias condições para os que passarinho possam existir, como o rio, árvores, frutas, brejos, insetos.
De forma lírica, Manoel destaca a importância de todo um ecossistema para que apenas um tipo de animal possa viver. Ele mostra como é essencial conservar uma cadeia complexa da fauna e flora para garantir a continuidade da natureza, pois tudo está relacionado.
Quem foi Manoel de Barros
Nascido em Cuiabá, no Mato Grosso, no dia 19 de dezembro de 1916, Manoel Wenceslau Leite de Barros ficou conhecido pelo grande público apenas pelo primeiro e último nome.
Sua obra é considerada pertencente à terceira geração do modernismo (a conhecida Geração de 45).
A infância do poeta foi toda passada em uma fazenda no Pantanal, local onde seu pai, João Venceslau Barros, tinha uma propriedade. Durante a adolescência, Manoel mudou para Campo Grande onde estudou em um Colégio Interno.
Seu primeiro livro foi publicado em 1937 (Poemas Concebidos Sem Pecados).
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O poeta se mudou para o Rio de Janeiro para cursar Direito e se formou em 1941. Nessa mesma época se filiou ao Partido Comunista.
Com fome de novas vivências, Manoel viveu Nos Estados Unidos, na Bolívia e no Peru.
No princípio dos anos sessenta resolveu regressar para a fazenda que tinha no Pantanal para criar gado.
Em paralelo com as atividades rurais, nunca deixou de escrever e começou a ser consagrado pela crítica a partir dos anos oitenta. O escritor recebeu duas vezes o Prêmio Jabuti: em 1989 com o livro O guardador de águas e em 2002 com O fazedor de amanhecer.
Morreu em 13 de novembro de 2014, em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul.
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