Música Drão, de Gilberto Gil


Rebeca Fuks
Rebeca Fuks
Doutora em Estudos da Cultura

Drão é um dos grandes clássicos da música popular brasileira. Extremamente original, a canção autobiográfica composta por Gilberto Gil, trata do divórcio de uma forma muito especial. Os versos dedicados à separação são repletos de afeto, carinho e respeito.

Composta em 1981 e lançada em 1982, Drão é, antes de tudo, uma lindíssima homenagem à Sandra Gadelha, ex-mulher de Gil e mãe de três dos seus filhos (Pedro, Preta e Maria).

Letra

Drão!
O amor da gente é como um grão
Uma semente de ilusão
Tem que morrer pra germinar
Plantar nalgum lugar
Ressuscitar no chão
Nossa semeadura
Quem poderá fazer aquele amor morrer
Nossa caminhadura
Dura caminhada
Pela noite escura

Drão!
Não pense na separação
Não despedace o coração
O verdadeiro amor é vão
Estende-se infinito
Imenso monolito
Nossa arquitetura
Quem poderá fazer aquele amor morrer
Nossa caminhadura
Cama de tatame
Pela vida afora

Drão!
Os meninos são todos sãos
Os pecados são todos meus
Deus sabe a minha confissão
Não há o que perdoar
Por isso mesmo é que há de haver mais compaixão
Quem poderá fazer
Aquele amor morrer
Se o amor é como um grão
Morre, nasce trigo
Vive, morre pão
Drão!
Drão!

Análise da letra

O título da música faz uma referência ao apelido carinhoso dado à Sandra Gadelha, na época mulher de Gilberto Gil. A letra, autobiográfica, foi composta durante a separação.

A primeira palavra da letra, que se repente ao longo da canção, é como que um chamamento, quando o eu-lírico se dirige à antiga amada.

Enquanto uma enorme parcela de composições são criadas para louvar o amor ou lamentar o amor perdido, Gil em Drão tenta colocar no divórcio uma perspectiva solar e otimista:

Drão!
O amor da gente é como um grão
Uma semente de ilusão
Tem que morrer pra germinar
Plantar nalgum lugar
Ressuscitar no chão
Nossa semeadura

Não é como se o amor de tantos anos morresse, é como se aquela paixão de outrora tivesse se transformado em outra coisa, num sentimento também bom, mas diferente daquilo que se tinha no início.

A metáfora com a plantação é preciosa. Para além da rima que se gera (Drão/grão), o ouvinte percebe como o fim é necessário para que se estabeleça uma nova relação.

A segunda parte da letra, por sua vez, trata da partilha somente entre o casal:

Quem poderá fazer aquele amor morrer
Nossa caminhadura
Dura caminhada
Pela noite escura

Ao afirmar que o amor não morre, o eu-lírico garante que o afeto que antes dizia respeito a uma relação amorosa agora encontra-se em mutação e irá virar outro tipo de sentimento.

A caminhadura que fala a letra pode ser uma referência à cama de tatame, onde o casal costumava dormir, mas a palavra também pode ser lida como o reconhecimento da dificuldade do percurso. Logo depois a ordem das palavras se inverte e caminhadura vira dura caminhada, aí então o eu-lírico reconhece os percalços do caminho e a dificuldade da vida a dois. Ele sublinha que todo esse carinho não acaba com a separação.

No trecho a seguir, o eu-lírico convida aquela que virá a ser a sua futura ex-esposa a pensar de uma nova forma:

Drão!
Não pense na separação
Não despedace o coração
O verdadeiro amor é vão
Estende-se infinito
Imenso monolito
Nossa arquitetura

Ao invés do sofrimento, o eu-lírico estimula a olhar para para o que há de bom e sólido na relação. Longe de se perder ou extinguir, o que se tenta traduzir é que o amor se metamorfoseia em outro tipo de afeto.

Se em algum momento o que vigorou foi a paixão e a euforia, vemos agora um carinho permanente, infinito, que se espalha e se multiplica.

Os frutos dessa relação são não só sentimentais como também concretos: os filhos. Por isso, no trecho, Drão é lembrada da herança deixada pelo relacionamento:

Drão!
Os meninos são todos sãos

Nesses versos Gil faz uma referência aos três filhos do casal, Pedro, Preta e Maria.

A canção acabou por carregar uma certa tristeza porque a realidade não coincidiu com a letra cantada por Gil: Pedro, um dos filhos do casal, faleceu jovem, aos 19 anos, em um trágico acidente de carro ocorrido em 1990. Mas no tempo em que a música foi escrita - no princípio dos anos oitenta - de fato os meninos estavam todos bem.

A letra continua, agora com um tom mais confessional, onde o eu-lírico faz um mea culpa isentando a ex-mulher do fato da relação ter falhado:

Os pecados são todos meus
Deus sabe a minha confissão
Não há o que perdoar
Por isso mesmo é que há de haver mais compaixão

Ao invés de invocar sentimentos comuns ao rompimento como a raiva e o ciúme, o eu-lírico pede que Drão tenha sensibilidade e compreensão para lidar com a situação e perceber que se trata de uma decisão madura de dois adultos que não funcionam mais como um casal, embora guardem um imenso carinho mútuo.

O final da música é ilustrado com a bela metáfora do pão para provar que os afetos viram outra coisa. Assim como o grão precisa morrer para virar o trigo, o cereal precisa crescer para se transformar em pão.

Se o amor é como um grão
Morre, nasce trigo
Vive, morre pão

Gil sublinha nesses versos a passagem do tempo e a incrível capacidade de transformação dos afetos - que, no caso do divórcio, não se extingue, se modifica.

Bastidores da criação

Gilberto Gil começou a namorar Sandra em 1968 e acabou por se casar com ela no ano a seguir.

O matrimônio, que era o terceiro de Gilberto Gil, durou 12 anos e foi para ela que Drão foi escrita. Com Sandra, Gil teve três filhos: Pedro, Preta e Maria.

A canção que virou um dos clássicos da música popular brasileira foi feita justamente durante o processo de divórcio do casal, no princípio dos anos oitenta.

Como foi, de fato, a separação

Drão ficou marcada como uma canção que ilustra o fim de um casamento longevo, foi mais de uma década de matrimônio.

O divórcio entre Gilberto Gil e Sandra Gadelha foi realizado de modo pacífico, respeitando a privacidade do casal e protegendo especialmente os filhos. Em algumas entrevistas pontuais Sandra narra os bastidores da decisão da separação:

Nos separamos de comum acordo. O amor tinha se transformado em outra coisa. E a música fala exatamente dessa mudança, de um tipo de amor que vive, morre e renasce de outra maneira. Nosso amor nunca morreu, até hoje somos muito amigos. Com o passar do tempo a música foi me emocionando mais, fui refletindo sobre a letra. A poesia é um deslumbre, está ali nossa história, a cama de tatame, que adorávamos.

Gilberto Gil e Sandra.
Gilberto Gil e Sandra, sua ex-mulher. Drão é dedicada à ela.

Por que a música se chama Drão?

Sandrão foi um apelido dado por Maria Bethânia que acabou sendo adotado pelas pessoas próximas. Sandrão rapidamente virou Drão, um chamamento carinhoso.

Uma curiosidade: Sandra é irmã da primeira mulher de Caetano Veloso, Dedé Gadelha. Segundo a própria Sandra, ela cresceu imersa no universo de artistas na Bahia e desde muito cedo foi identificada pelo apelido:

Desde meus 14 anos, todo mundo em Salvador me chamava de Drão. Fui criada com Gal Costa, morávamos na mesma rua. Sou irmã de Dedé, primeira mulher de Caetano Veloso. Nossa rua era o ponto de encontro da turma da Tropicália. Fui ao primeiro casamento de Gil. Depois conheci Nana Caymmi, sua segunda mulher. Nosso amor nasceu dessa amizade.

Na Bahia.
Drão e Gil com o filho no colo na companhia de Caetano Veloso.

A morte do filho Pedro

Embora apareça brevemente na letra, Drão faz referência aos três filhos frutos do casamento. Pedro, Preta e Maria são mencionados quando o eu-lírico diz que os filhos estão todos sãos.

O trecho é especialmente delicado porque Pedro, o filho mais velho que era músico e participava da banda Ego Trip, faleceu de modo precoce, aos apenas 19 anos.

Vítima de um acidente de carro na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, Pedro Gadelha Gil Moreira foi enterrado no dia 2 de fevereiro de 1990. A letra de Drão ficou também como um registro saudoso de um tempo em que tudo estava bem e a família existia em sua plenitude.

O filho Pedro faleceu em uma acidente trágico de carro quando tinha apenas 19 anos.
O filho Pedro faleceu em uma acidente trágico de carro quando tinha apenas 19 anos.

Regravações da música

Drão tem conseguido vencer a barreira do tempo e vem sendo regravada em parceria com (ou por) alguns amigos especiais. Descubra abaixo algumas das regravações mais populares desse clássico da MPB.

Com Caetano Veloso

Os amigos de longa data se encontraram para gravar o álbum Dois Amigos, Um Século de Música. No disco encontramos a faixa Drão.

Caetano foi uma escolha de parceria bastante especial porque ele acompanhou de perto a relação do casal Gil e Sandra:

Djavan

Durante os anos 2000, Djavan pediu autorização para Gilberto Gil regravar Drão. O resultado ficou registrado no disco Perfil, lançado em 2006.

Com Ivete Sangalo

Outra versão que também ficou bastante conhecida foi feita em parceria com a cantora Ivete Sangalo e com Caetano Veloso. Os três baianos se reuniram e apresentaram a música durante um show apresentado em 2012:

Conheça também

Rebeca Fuks
Rebeca Fuks
Formada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2010), mestre em Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2013) e doutora em Estudos de Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e pela Universidade Católica Portuguesa de Lisboa (2018).