Como Nossos Pais, de Belchior: análise, explicação e significado da música


Carolina Marcello
Carolina Marcello
Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes

Como Nossos Pais é uma música de Belchior, composta e gravada em 1976, integrando o disco Alucinação. No mesmo ano, Elis Regina gravou uma versão do tema, que se tornou extremamente popular.

Reflexo do contexto histórico e social da época, a canção fala de um conflito geracional e da angústia da juventude. Também por isso, continua fazendo sentido nos dias que correm e ainda é um sucesso, tanto tempo depois.

Análise e explicação da música Como Nossos Pais

Estrofes 1 e 2

Não quero lhe falar
Meu grande amor
Das coisas que aprendi
Nos discos
Quero lhe contar como eu vivi
E tudo o que aconteceu comigo

Viver é melhor que sonhar
Eu sei que o amor
É uma coisa boa
Mas também sei
Que qualquer canto
É menor do que a vida
De qualquer pessoa

Desde os primeiros versos, podemos perceber que a música tem um interlocutor. O sujeito está falando com alguém, que identifica como sendo o seu "grande amor".

Explica que não quer falar de assuntos abstratos como sonhos, nem de arte ou música. Ele precisa falar da sua vida, partilhar com o outro aquilo que tem passado.

Existe, no ar, um clima de urgência, que vai sendo confirmado ao longo da canção. Na segunda estrofe, é sublinhado o valor da vida como algo superior, mais importante do que qualquer outra coisa.

Estrofes 3 e 4

Por isso cuidado, meu bem
Há perigo na esquina
Eles venceram e o sinal
Está fechado pra nós
Que somos jovens

Para abraçar seu irmão
E beijar sua menina na rua
É que se fez o seu braço
O seu lábio e a sua voz

A terceira estrofe começa com um aviso. Há uma ameaça constante que paira em volta do sujeito, o "perigo na esquina" que espera para atacar.

O sujeito e seu interlocutor são aliados numa guerra na qual foram vencidos. Os adversários ganharam e hoje os perseguem. Esta é uma referência ao regime ditatorial instaurado em 64 e os retrocessos de mentalidade que trouxe ao povo brasileiro.

Movimento estudantil na Passeata dos Cem Mil, 1968.
Movimento estudantil na Passeata dos Cem Mil, 1968.

Perante a repressão, a juventude tentava resistir mas estava estagnada, parada no "sinal vermelho", esperando o seu tempo. Na música, o clima de medo e violência contrasta com a natureza desses indivíduos, que acreditavam ser feitos para o carinho e a camaradagem.

Estrofes 5 e 6

Você me pergunta
Pela minha paixão
Digo que estou encantada
Como uma nova invenção
Eu vou ficar nesta cidade
Não vou voltar pro sertão
Pois vejo vir vindo no vento
Cheiro de nova estação
Eu sinto tudo na ferida viva
Do meu coração

Já faz tempo
Eu vi você na rua
Cabelo ao vento
Gente jovem reunida
Na parede da memória
Essa lembrança
É o quadro que dói mais

Apesar de tudo, o eu-lírico não desiste. Assim, declara que não vai deixar a cidade, nem voltar para a terra onde nasceu. No meio do caos, ele continua tendo esperança e sente no ar indícios de um novo tempo que está a caminho.

Mesmo tentando ter uma perspectiva otimista, o sujeito não esconde a dor, declarando que o seu coração é uma "ferida viva". Recorrendo às lembranças, partilha memórias de um passado bem diferente, onde tudo era liberdade e leveza.

As ideias de "cabelo ao vento" e "gente jovem reunida" parecem ser referências ao movimento hippie, a contracultura que pregava "paz e amor". Para o sujeito, toda essa harmonia foi interrompida de repente e dominada pela opressão.

Refrão

Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Como os nossos pais

O refrão carrega o pesar do sujeito, forçado a admitir a derrota. Olhando em volta, percebe que todos os esforços foram em vão, a luta não adiantou. Apesar da sua geração ter ideias consideravelmente diferentes das que vigoravam antes, o Brasil estava parado no tempo.

Por isso, os jovens eram forçados a viver segundo os mesmos padrões conservadores da geração anterior, sentindo que a sua era foi roubada por entre os seus dedos.

Estrofe 7

Nossos ídolos
Ainda são os mesmos
E as aparências
Não enganam não
Você diz que depois deles
Não apareceu mais ninguém

Ainda com o tom derrotista dos versos anteriores, a terceira estrofe mostra que estes indivíduos estão presos ao passado. Face a um presente tenebroso, continuam viajando nas memórias..

A passagem transmite também uma sensação de abandono, de orfandade. O sujeito e seu interlocutor parecem sentir que estão perdidos e não há ninguém para indicar o caminho.

Estrofes 8 e 9

Você pode até dizer
Que eu tô por fora
Ou então
Que eu tô inventando

Mas é você
Que ama o passado
E que não vê
É você
Que ama o passado
E que não vê
Que o novo sempre vem

Nas estrofes 8 e 9, o eu-lírico e seu amor parecem discordar. O interlocutor já não acredita que uma mudança seja possível, enquanto o sujeito tem um laivo de positividade.

Mesmo desanimado com a realidade em que vive, ele tenta convencer o outro que "o novo sempre vem". Embora pareça impossível, perante tanta repressão, a liberdade vai chegar.

A mensagem parece ser destinada a todos os que escutam a música: Belchior pede que não entreguem os pontos, porque a realidade vai mudar.

Estrofe 10

Hoje eu sei
Que quem me deu a idéia
De uma nova consciência
E juventude
Tá em casa
Guardado por Deus
Contando o vil metal

A última estrofe parece ser uma reflexão acerca de todo o percurso da sua geração. Desiludido, o sujeito faz uma crítica evidente àqueles que foram seus companheiros de luta.

Os antigos revolucionários, e mesmo os artistas, que despertaram a sua consciência, são os mesmos que se venderam. É visível o rancor do sujeito, ao perceber que seus antigos ídolos foram corrompidos pelo dinheiro, o "vil metal".

Significado da música

O tema dá voz a uma geração de jovens que viram a sua liberdade confiscada pela instauração da ditadura militar brasileira.

Frutos de uma época marcada pela inovação, a experimentação e a contracultura, seu estilo de vida foi alterado pela chegada da repressão.

O retrocesso cultural e social gerou sentimentos de angústia e frustração nessa juventude, que não teve a oportunidade de trilhar seus caminhos longe da perseguição e da censura.

Belchior é, em Como Nossos Pais, porta-voz do seu tempo e do conflito geracional que se vivia. Embora pensassem de forma diferente e tivessem batalhado pela liberdade, esses jovens acabaram condenados a viver segundo a mesma moral conservadora que a geração anterior.

Letra de Como Nossos Pais

Não quero lhe falar
Meu grande amor
Das coisas que aprendi
Nos discos
Quero lhe contar como eu vivi
E tudo o que aconteceu comigo

Viver é melhor que sonhar
Eu sei que o amor
É uma coisa boa
Mas também sei
Que qualquer canto
É menor do que a vida
De qualquer pessoa

Por isso cuidado, meu bem
Há perigo na esquina
Eles venceram e o sinal
Está fechado pra nós
Que somos jovens

Para abraçar seu irmão
E beijar sua menina na rua
É que se fez o seu braço
O seu lábio e a sua voz

Você me pergunta
Pela minha paixão
Digo que estou encantada
Como uma nova invenção
Eu vou ficar nesta cidade
Não vou voltar pro sertão
Pois vejo vir vindo no vento
Cheiro de nova estação
Eu sinto tudo na ferida viva
Do meu coração

Já faz tempo
Eu vi você na rua
Cabelo ao vento
Gente jovem reunida
Na parede da memória
Essa lembrança
É o quadro que dói mais

Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Como os nossos pais

Nossos ídolos
Ainda são os mesmos
E as aparências
Não enganam não
Você diz que depois deles
Não apareceu mais ninguém

Você pode até dizer
Que eu tô por fora
Ou então
Que eu tô inventando

Mas é você
Que ama o passado
E que não vê
É você
Que ama o passado
E que não vê
Que o novo sempre vem

Hoje eu sei
Que quem me deu a idéia
De uma nova consciência
E juventude
Tá em casa
Guardado por Deus
Contando o vil metal

A versão de Elis Regina e outras interpretações

No mesmo ano em que a canção de Belchior foi lançada, Elis Regina gravou a sua versão, no célebre álbum Falso Brilhante.

Considerada uma das maiores cantoras brasileiras de todos os tempos, a artista tornou Como Nossos Pais num dos principais hinos da resistência.

Relembre a interpretação da artista, abaixo:

Apesar do contexto histórico fortemente marcado, a música continua fazendo sucesso e recebendo o reconhecimento das novas gerações.

Maria Rita, filha de Elis, regravou o êxito, muitos anos depois. Pitty, cantora conhecida pelas músicas de forte crítica social, também fez a sua versão.

Quem foi Belchior

Antonio Carlos Belchior (26 de outubro de 1946 – 30 de abril de 2017) foi um cantor, compositor e artista plástico brasileiro.

Considerado um dos grandes nomes da MPB, lançou o disco Alucinação, em 1976, apontado como um dos álbuns mais revolucionários da música nacional.

Entre os temas do disco, se destaca a canção Como Nossos Pais, que acabou manifestando o sofrimento de uma geração inteira.

Belchior por Ivana Mascarenhas
Belchior por Ivana Mascarenhas.

Cultura Genial no Spotify

Aproveite para escutar a playlist que preparamos para você, onde constam os maiores hinos de resistência à ditadura militar.

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Carolina Marcello
Carolina Marcello
Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes e licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Apaixonada por leitura e escrita, produz conteúdos on-line desde 2017, sobre literatura, cultura e outros campos do saber.