Pra não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré (análise da música)


Carolina Marcello
Carolina Marcello
Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes

A música "Pra não dizer que não falei das flores" foi escrita e cantada por Geraldo Vandré em 1968, conquistando o segundo lugar no Festival Internacional da Canção desse ano. O tema, também conhecido como "Caminhando", se tornou um dos maiores hinos da resistência ao sistema ditatorial militar que vigorava na época.

A composição foi censurada pelo regime e Vandré foi perseguido pela polícia militar, tendo que fugir do país e optar pelo exílio para evitar represálias.

Letra da música

Caminhando e cantando e seguindo a canção
Somos todos iguais braços dados ou não
Nas escolas, nas ruas, campos, construções
Caminhando e cantando e seguindo a canção

Vem, vamos embora, que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer

Pelos campos há fome em grandes plantações
Pelas ruas marchando indecisos cordões
Ainda fazem da flor seu mais forte refrão
E acreditam nas flores vencendo o canhão

Vem, vamos embora, que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer

Há soldados armados, amados ou não
Quase todos perdidos de armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição
De morrer pela pátria e viver sem razão

Vem, vamos embora, que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer

Nas escolas, nas ruas, campos, construções
Somos todos soldados, armados ou não
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Somos todos iguais braços dados ou não
Os amores na mente, as flores no chão
A certeza na frente, a história na mão
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Aprendendo e ensinando uma nova lição

Vem, vamos embora, que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer

Análise e interpretação

Com a sonoridade de um hino, o tema segue um esquema rimático simples (A-A-B-B, ou seja, o primeiro verso rima com o segundo, o terceiro com o quarto e assim por diante). Utiliza também um registro de linguagem corrente, com uma letra fácil de memorizar e transmitir a outras pessoas.

Assim, parece fazer referência às canções que eram usadas em passeatas, protestos e manifestações contra o regime, que se espalhavam pelo país no ano de 1968. A música era, então, usada como um instrumento de combate, que pretendia divulgar, de forma direta e concisa, mensagens ideológicas e de revolta.

Caminhando e cantando e seguindo a canção
Somos todos iguais braços dados ou não
Nas escolas, nas ruas, campos, construções
Caminhando e cantando e seguindo a canção

A primeira estrofe assinala isso, com os verbos "caminhando e cantando", que remetem diretamente para a imagem de uma passeata ou um protesto público. Lá, os cidadãos são "todos iguais", mesmo não existindo relação entre si ("braços dados ou não").

Foto de um protesto de 1968, jovem segura um cartaz pedindo o final do militarismo.
Protesto em 1968 pelo fim da ditadura militar.

Referindo "escolas, ruas, campos, construções", Vandré pretendia demonstrar que pessoas de todos os extratos sociais e com diferentes ocupações e interesses estavam juntas e marchavam pela mesma causa. É evidente a necessidade de união que é convocada e a lembrança de que todos queriam a mesma coisa: liberdade.

Vem, vamos embora, que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer

O refrão, repetido várias vezes ao longo da música, é um apelo à ação e à união. Geraldo fala diretamente com quem escuta a música, chamando para a luta: "Vem". Com o uso da primeira pessoa do plural (em "vamos embora"), imprime um aspeto coletivo à ação, lembrando que seguirão juntos no combate.

Ao afirmar que “esperar não é saber”, o autor sublinha que quem está consciente da realidade do país não pode aguardar de braços cruzados que as coisas mudem. A mudança e a revolução não serão entregues de bandeja para ninguém, é necessário agirem rapidamente (“quem sabe faz a hora, não espera acontecer”).

Pelos campos há fome em grandes plantações
Pelas ruas marchando indecisos cordões
Ainda fazem da flor seu mais forte refrão
E acreditam nas flores vencendo o canhão

Nesta estrofe, é denunciada a miséria em que os agricultores e camponeses viviam e a exploração a que estavam sujeitos ("fome nas grandes plantações"). Existe também uma forte crítica aos pacifistas que pretendiam resolver a crise política com diplomacia e comum acordo, organizados em "indecisos cordões".

Retrato de mulher nos anos 60 segurando uma flor diante dos militares.
Retrato de Jan Rose Kasmir, que enfrentou os soldados norte-americanos com uma flor, em 1967.

Os ideais de "paz e a amor" promovidos pelo movimento da contracultura hippie, o flower power, são simbolizados pelas flores (o "mais forte refrão"). É sublinhada a sua insuficiência contra o "canhão" (a força e a violência da polícia militar).

Há soldados armados, amados ou não
Quase todos perdidos de armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição
De morrer pela pátria e viver sem razão

Embora as forças militares simbolizassem o inimigo, o poder ditatorial, a música não desumaniza os soldados. Pelo contrário, lembra que estavam “quase todos perdidos de armas na mão”, ou seja, usavam da violência, matavam, mas nem eles mesmos sabiam porquê. Apenas obedeciam ordens cegamente, por causa da lavagem cerebral que sofriam: a "antiga lição / De morrer pela pátria e viver sem razão".

Soldados durante a ditadura militar.
Soldados brasileiros durante a ditadura militar.

Os soldados, levados por um espírito de falso patriotismo, tinham que dedicar suas vidas e muitas vezes morrer em função do sistema que protegiam e do qual eram também vítimas.

Nas escolas, nas ruas, campos, construções
Somos todos soldados, armados ou não
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Somos todos iguais braços dados ou não
Os amores na mente, as flores no chão
A certeza na frente, a história na mão
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Aprendendo e ensinando uma nova lição

Na última estrofe, é reforçada a mensagem de igualdade entre todos os cidadãos e a urgência de partirem juntos para a luta, porque só através do movimento organizado poderia chegar a revolução.

A música lembrava que deviam avançar com os "amores na mente", pensando nas pessoas que amavam e foram vítimas da repressão militar. Para serem vitoriosos, era necessário deixarem "as flores no chão", ou seja, abandonarem as abordagens pacifistas.

Estava nas suas mãos "a história", a possibilidade de mudar a realidade do país e o futuro para todos os brasileiros . Deveriam continuar "caminhando e cantando" e "aprendendo e ensinando uma nova lição", transmitindo o seu conhecimento, despertando outras pessoas para a militância.

Significado da música

"Pra não dizer que nao falei das flores" é um convite à resistência política radical, um chamamento para todas as formas de luta necessárias para derrubar a ditadura.

Geraldo Vandré fala de flores para tentar mostrar que não é suficiente usar "paz e amor" para combater armas e canhões, sublinhando que a única forma de vencerem era a união e o movimento organizado.

Contexto histórico

1968: repressão e resistência

Em 1968, o Brasil enfrentava um dos piores momentos de repressão política, a instituição do AI-5: um conjunto de leis que conferiam poderes quase ilimitados ao regime.

Face ao autoritarismo e diversos episódios de violência policial, os estudantes universitários começaram a se mobilizar, fazendo protestos públicos que eram recebidos com agressões, mandatos de prisão e, por vezes, assassinatos.

Aos poucos, esses protestos foram se espalhando pelo país e outros grupos se juntaram ao movimento: os artistas, os jornalistas, os padres, os advogados, as mães, etc.

Censura

Retrato de atrizes brasileiras em protesto contra a censura militar
Retrato de atrizes brasileiras em protesto contra a censura.

Apesar da censura que ameaçava, proibia e perseguia, a música se tornou um dos veículos artísticos usados para transmitir mensagens de cariz político e social.

Os interpretes estavam conscientes do perigo que corriam quando divulgavam publicamente as suas opiniões, mas arriscavam sua vida para desafiar o poder instituído e passar uma mensagem de força e coragem para os brasileiros.

Muitos anos depois do Festival Internacional da Canção de 1968, um dos jurados confessou numa entrevista que "Pra não dizer que não falei das flores" teria sido o tema vencedor. Vandré ficou em segundo lugar devido às pressões políticas que a organização do evento e a TV Globo, rede que emitia o programa, sofreram.

Geraldo Vandré: exílio e afastamento da vida pública

Geraldo Vacré no Festival da Canção de 1968.
Geraldo Vandré no Festival Internacional da Canção em 1968.

As consequências possíveis para quem desafiava o poder militar eram a prisão, a morte ou, para quem conseguia escapar, o exílio.

Por causa de "Pra não dizer que não falei das flores", Geraldo Vandré começou a ser vigiado pelo Departamento de Ordem Política e Social e teve que fugir.

Viajou por vários países como Chile, Argélia, Alemanha, Grécia, Áustria, Bulgária e França. Quando regressou ao Brasil, em 1975, preferiu se afastar das luzes da ribalta e se dedicar à carreira de advogado.

Sua canção e a mensagem política que ela transmitia, no entanto, entraram para a história da música e da resistência política brasileira.

Conheça também

Carolina Marcello
Carolina Marcello
Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes e licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Apaixonada por leitura e escrita, produz conteúdos on-line desde 2017, sobre literatura, cultura e outros campos do saber.