Poema em linha reta de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)


Carolina Marcello
Carolina Marcello
Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes

"Poema em linha reta" é uma composição que Fernando Pessoa assinou com o seu heterônimo Álvaro de Campos, que escreveu entre os anos de 1914 e 1935, não existindo certeza da sua data.

O poema é uma crítica às relações sociais que Campos parece observar, de fora, e a sua incapacidade de se operar pelas regras de etiqueta e conduta vigentes. O sujeito lírico aponta a falsidade e hipocrisia dessas relações.

POEMA EM LINHA RETA

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das
etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Análise e interpretação

Premissa

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

Com estes primeiros dois versos, o sujeito mostra qual a premissa do poema, o tema do qual vai falar: o modo como todas as pessoas que conhece aparentam ser perfeitas e levar vidas sem falhas. Não levam "porrada", ou seja, não são agredidos pelo destino, não perdem, são "campeões em tudo".

O sujeito lírico sobre si mesmo

Depois de mencionar a falsa imagem de perfeição dos seus contemporâneos, o sujeito lírico passa a se apresentar, listando os seus maiores defeitos, suas falhas e vergonhas.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,

Não tenta se mostrar como um "campeão", não procura passar a imagem de ser um homem bom ou sério. Pelo contrário, se afirma como "reles", "vil" e assume mesmo não cumprir regras básicas de higiene que são socialmente esperadas ("porco", "sujo, sem "paciência para tomar banho").

Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das
etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,

O sujeito lírico confessa também a sua incapacidade de se relacionar com os outros, afirmando que é "ridículo", "absurdo, "grotesco", "mesquinho" e que tem "enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas", ou seja, que acaba se humilhando por não saber como agir em público.

Admite que é maltratado pelos outros e não se sente capaz de encará-los ("tenho sofrido enxovalhos e calado") e que quando tenta responder apenas se sente mais envergonhado ("Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda").

Nesta passagem, afirma também que o seu comportamento inadequado é percebido até pelos empregados, referindo o desprezo das "criadas de hotel" e dos "moços de fretes" que deveriam tratá-lo com algum respeito e reverência.

Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;

Vai mais longe, confessando a sua desonestidade, dando conta das suas "vergonhas financeiras", das vezes que pediu "emprestado sem pagar". Falando sobre dinheiro desta forma, não para contar vantagem mas para admitir insucesso e ruína, o sujeito lírico aborda um dos temas tabu na sociedade.

Outra coisa que ninguém gosta de confessar mas que o sujeito admite é a sua covardia, a sua incapacidade de se defender e de lutar pela própria honra, preferindo se desviar dos golpes ("Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado").

Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Nestes versos, é evidente o isolamento do sujeito lírico que se sente à parte dessas condutas de fingimento social e, assim, está totalmente solitário, pois é o único que reconhece o próprio infortúnio, os próprios defeitos.

O sujeito lírico sobre os outros

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Na sequência do que foi dito acima, o sujeito lírico expõe a sua dificuldade em dialogar com as outras pessoas, pois todas fingem ser perfeitas, só contam e mostram aquilo que é conveniente, o que querem transmitir aos outros para impressioná-los.

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Assim, procura um companheiro, alguém igual a ele, uma "voz humana" que se exponha tal como ele faz, relatando todos os seus defeitos e pontos fracos. Só assim poderia existir verdadeira intimidade.

Também é transmitida a ideia de que mesmo quando admitem pequenos fracassos, as pessoas nunca assumem os seus maiores erros e falhas, "são todos o Ideal". É esse o mundo de aparências que Campos critica neste poema.

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

É evidente o seu cansaço perante a falsidade dos outros, que mesmo quando sofrem adversidades, conseguem sempre manter a compostura, a dignidade, as aparências, não comprometem a sua imagem pública.

Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Estes três últimos versos parecem resumir a impossibilidade de relacionamento entre o sujeito lírico e os outros, que intitula de seus "superiores" devido à imagem irreal de perfeição que criam de si mesmos.

Significado do poema

Em "Poema em Linha Reta", Álvaro de Campos faz uma crítica evidente à sociedade à qual pertencia, expondo o modo como os outros apenas querem dar a conhecer o melhor das suas vidas.

Expõe o vazio e a hipocrisia de uma sociedade de aparências, bem como a falta de pensamento e sentido crítico dos seus semelhantes, e as suas tentativas permanentes de conquistar o respeito e admiração dos outros. Assim, o sujeito lírico deseja que as outras pessoas, tal como ele, sejam capazes de assumir e demonstrar as suas falhas, o seu lado pior, em vez de negar e esconder aquilo que têm de mais baixo e humilhante.

Procura mais transparência, sinceridade, humildade, menos orgulho e menos ilusões de grandeza desses "semideuses" que mentem a si mesmos e aos outros para tentarem alimentar seus egos.

Em todo o poema existe um tom de desafio / provocação aos seus pares. O sujeito lírico pretende, com esta composição, incentivá-los a contarem a verdade, a se mostrarem como são, a aceitarem que são humanos e falíveis, pois só assim podem criar relações verdadeiras.

Fernando Pessoa e Álvaro de Campos

Álvaro de Campos (1890 - 1935) é um dos heterônimos mais célebres de Fernando Pessoa. Engenheiro naval, viveu na Escócia e teve uma educação britânica, que se refletiu nas suas influências e referências, bem como nos seus escritos em inglês.

Embora fosse discípulo de Alberto Caeiro, outro heterônimo de Pessoa, os seus estilos eram bastantes distintos. Campos foi o único heterônimo cuja produção poética passou por diversas fases, com influências modernistas como o subjetivismo, o futurismo e o sensacionismo.

Em "Poema em linha reta" podemos notar o seu desânimo, o seu tédio e a sua desilusão perante a vida e perante os seus pares, que resulta num vazio existencial e numa ânsia constante de sentir.

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Carolina Marcello
Carolina Marcello
Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes e licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Apaixonada por leitura e escrita, produz conteúdos on-line desde 2017, sobre literatura, cultura e outros campos do saber.