10 obras para conhecer a literatura de cordel


Rebeca Fuks
Rebeca Fuks
Doutora em Estudos da Cultura

A literatura de cordel é parte importante de uma rica cultura do nordeste brasileiro.

No cordel os poetas contam uma história em formato de poesia, usando rimas. Muitos cordéis são declamados e ilustrados.

O nome cordel vem do fato de, na origem desse tipo de literatura, os vendedores pendurarem os livros e folhetos em uma corda para venderem nas feiras livres.

1. Saudação ao Juazeiro do Norte, de Patativa do Assaré

Saudação ao Juazeiro do Norte

Em Saudação ao Juazeiro do Norte, Patativa do Assaré faz um elogio da cidade nordestina e conta muito da vida de Padre Cícero Romão, um personagem importante para a região.

Assim como em outros trabalhos seus, reparamos como os poemas são uma espécie de música, com versos muito marcados pelas rimas. Há quem diga que Patativa não escrevia, cantava, de tão marcado pela musicalidade que era o seu texto.

Ao longo da obra Saudação ao Juazeiro do Norte, Patativa fala não só sobre a cidade de Juazeiro, mas sobre a importância da fé para as pessoas da terra.

Logo que começa a descrever a cidade, o poeta lembra de Padre Cícero.

Mesmo sem eu ter estudo
sem ter do colégio o bafejo,
Juazeiro, eu te saúdo
com o meu verso sertanejo
Cidade de grande sorte,
de Juazeiro do Norte
tens a denominação,
mas teu nome verdadeiro
será sempre Juazeiro
do Padre Cícero Romão.

Juazeiro e Padre Cícero aparecem, então, sempre juntos no poema, como se um não existisse sem o outro. Patativa do Assaré (1909-2002) é um dos autores mais importantes no universo do cordel e conta nos seus versos muito da realidade do sertanejo e do trabalho com a terra.

O pseudônimo Patativa faz referência a um pássaro sertanejo nordestino que tem um canto bonito e Assaré é uma homenagem a vila mais próxima do lugar onde nasceu.

O rapaz, de origem humilde, veio ao mundo no interior do Ceará e era filho de agricultores pobres. Ainda jovem, recebeu pouca educação formal, tendo sido apenas alfabetizado.

Ainda assim, desde cedo, começou a escrever versos enquanto também trabalhava no campo. Segundo o próprio Patativa:

Eu sou um caboclo roceiro que, como poeta, canto sempre a vida do povo

Se deseja saber mais sobre o escritor conheça o artigo Patativa do Assaré: poemas analisados.

2. A mulher que deu tabaco na presença do marido, de Gonçalo Ferreira da Silva

A mulher que deu tabaco na presença do marido

A história contada por Gonçalo Ferreira da Silva (1937) tem muito humor e nos apresenta Dona Juca como personagem principal da história.

Com o dom de curar as pessoas, ela usava o próprio tabaco para resolver qualquer tipo de problema de saúde: perna ferida, gripe, todo tipo de mal do corpo.

Dona Juca era dotada
De perfumado sovaco,
E quem ferisse uma perna
Numa queda ou num buraco
Ela curava a ferida
Com o seu próprio tabaco.

O marido de Dona Juca, o seu Mororó, não gostava muito da virtude da mulher porque ela reunia cada vez mais gente ao seu redor. A fama da curandeira vai aumentando dia após dia e o reconhecimento traz novos doentes para fazerem o tal tratamento milagroso.

O cordel gira todo em volta do universo das crendices e do romance. Muito divertido, os versos terminam de uma forma inesperada.

Gonçalo Ferreira da Silva (1937) é um importante cordelista que nasceu no Ceará, na cidade de Ipu, e publicou a sua primeira obra em 1963 (o livro Um resto de razão). A partir de então começou a escrever cordéis e a fazer pesquisa sobre cultura popular passando a frequentar a Feira de São Cristóvão, um conhecido local de cordelistas no Rio de Janeiro.

3. Poesia com rapadura, de Bráulio Bessa

Poesia com rapadura

Representante da nova geração do cordel, o jovem Bráulio Bessa (1985) traz em Poesia com rapadura uma série de versos sobre o cotidiano além de lições de vida.

Ao contrário de outras obras do universo do cordel que contam uma única história com princípio, meio e fim, o livro de Bráulio Bessa traz vários poemas muito diferentes, mas todos escritos com uma linguagem do dia a dia e tentando transmitir um ensinamento ao leitor.

Ah, se um dia os governantes
prestassem mais atenção
nos verdadeiros heróis
que constroem a nação;
ah, se fizesse justiça
sem corpo mole ou preguiça
lhe dando o real valor.
eu daria um grande grito:
tenho fé e acredito
na força do professor.

No poema Aos mestres, Bráulio faz um elogio aos professores e fala da necessidade dos governantes valorizarem o trabalho daqueles que se dedicam ao ensino. Muitos dos seus cordéis, assim como Aos mestres, são também críticas sociais.

Bráulio teve um papel importante na divulgação do cordel para além do nordeste. Depois de ter sido convidado para participar do programa matinal de Fátima Bernardes, o poeta passou a ter um quadro fixo onde recitava alguns dos seus cordéis mais famosos. Dessa forma, Bráulio ajudou a popularizar a cultura do cordel, até então menos conhecida entre os brasileiros que viviam fora do nordeste.

É fã do poeta? Então aproveite para conhecer o artigo Bráulio Bessa e seus melhores poemas.

4. História da rainha Ester, de Arievaldo Viana Lima

Historia da rainha Ester

O cordel do poeta popular Arievaldo conta o longo percurso de Ester, uma personagem bíblica importante para os judeus, que era órfã e considerada a mulher mais bela do seu povo.

Supremo Ser Incriado
Santo Deus Onipotente
Manda teus raios de luz
Ilumina a minha mente
Para transformar em versos
Uma história comovente

Falo da vida de Ester
Que na Bíblia está descrita
Era uma judia virtuosa
E extremamente bonita.

Ester vira rainha, e o cordel de Arievaldo conta desde os primeiros dias de vida da moça até os dilemas que ela precisa enfrentar para proteger o seu povo.

O autor faz uma releitura da história contada na bíblia e transforma o percurso de Ester num texto poético, cheio de rimas e detalhes ricos.

Arievaldo Viana Lima (1967-2020) usa os versos rápidos e rimados para contar mesmo o que aconteceu com Ester e com o seu povo naquele momento da história.

O poeta, que foi também ilustrador, publicitário e radialista, nasceu no Ceará e produziu uma série de cordéis ajudando a divulgar a cultura nordestina pelo país.

5. As aventuras do amarelo João Cinzeiro papa onça, de Francisco Sales Areda

As aventuras do amarelo João Cinzeiro papa onça

O personagem principal desse cordel é João de Abreu, um amarelo pançudo da praia de Goiana. Ele sofria com a miséria ao lado da mulher, Joana, que o batia. Um belo dia João resolve se revoltar contra a sua situação e se reinventa como um homem bravo e valente capaz de caçar onça.

A história de João de Abreu é marcada pela fé do nordestino, pela perseverança e, ao mesmo tempo, pela forte presença da ideia do destino.

Cada vivente ao nascer
traz seu programa traçado
para o bem ou para o mal
prá ser um rico ou arrasado
prá ser valente ou mofino
já vem tudo preparado

Francisco Sales Areda (1916-2005), que nos conta essa história, nasceu na Paraíba, em Campina Grande. Além de escrever cordel foi também cantador de viola, vendedor de folhetos e fotógrafo de feira (também conhecido como lambe-lambe).

O seu primeiro folheto, chamado O casamento e herança de Chica Pançuda com Bernardo Pelado, foi criado em 1946. Um dos seus folhetos - O homem da vaca e o poder da fortuna - chegou a ser adaptado para o teatro por Ariano Suassuna em 1973.

Além de falar sobre o dia a dia do sertanejo, Francisco Sales Areda também escreveu sobre uma série de eventos políticos em formato de cordel. É o caso do folheto A lamentável morte do presidente Getúlio Vargas.

6. Futebol no Inferno, de José Soares

Futebol no inferno

O paraibano José Francisco Soares (1914-1981) inventou no seu cordel uma partida de futebol imaginária entre personagens perigosos: o time de satanás contra o do cangaceiro Lampião.

O futebol no Inferno
está grande a confusão
vai haver melhor de três
pra ver quem é campeão
o time de satanás
ou o quadro de Lampião

Nos versos vemos uma partida de futebol que se repete todos os domingos, sendo assistida por 2, 3 e 4 mil diabos na arquibancada.

O divertido cordel consegue criar uma situação surreal com cem bolas em campo - bolas de aço maciço - e, ainda assim, parecer uma verdadeira partida de futebol normal, porque usa exemplos do nosso dia a dia que naturalizam o evento.

No cordel se discute, por exemplo, o juiz que deve apitar a partida, o tamanho do campo, a escalação dos times e até a participação do locutor. Há muitos elementos do mundo real misturados com o universo da fantasia.

O primeiro folheto de cordel de José Soares (1914-1981) foi publicado em 1928 (e chama Descrição do Brasil por estados). O paraibano trabalhou como agricultor até se mudar para o Rio de Janeiro, em 1934, onde passou a atuar como pedreiro, embora em paralelo tenha sempre escrito os seus versos.

Quando voltou para a sua terra natal, seis anos mais tarde, abriu uma banca de folhetos no Mercado de São José onde vendia os seus cordéis e os de amigos.

7. Dez cordéis num cordel só, de Antônio Francisco

Dez cordéis num cordel só

Como o próprio título resume, Dez cordéis num cordel só (2001), reúne dez poemas diferentes numa mesma obra. Em comum, as dez criações possuem a forma rimada e têm como tema as questões do dia a dia dos nordestinos.

Seu Zequinha era um galego
Do rosto da cor de brasa,
Morava longe da gente,
No Sítio Cacimba Rasa,
Mas, foi não foi, Seu Zequinha
Passava o dia lá em casa.

Antônio Francisco (1949) fala tanto sobre os problemas que os seus conterrâneos enfrentam no cotidiano como trata de questões mais espirituais. Ele retoma no cordel, por exemplo, a importância da fé para o povo nordestino e fala sobre algumas histórias pontuais da bíblia como a arca de Noé.

Nascido no Rio Grande do Norte, em Mossoró, Antonio Francisco é considerado por muitos como o rei do cordel. O poeta ocupa a cadeira 15 da Academia Brasileira de Literatura de Cordel.

8. Aparição de N.Senhora das Dores e a Santa Cruz do Monte Santo, de Minelvino Francisco Silva

Aparição de N.Senhora das Dores e a Santa Cruz do Monte Santo

O cordel de Minelvino Francisco Silva é um bom exemplo de como esse gênero recebe muita influência da religião católica e como muitos dos cordelistas pedem a benção as entidades superiores quando começam a escrever uma história sagrada:

Nossa Senhora das Dores
Cobre-me com o vosso manto
São João Evangelista
Que na vida escreveu tanto
Inspirai meu pensamento
Para escrever no momento
Sobre a cruz do Monte Santo

No cordel, Minelvino começa pedindo inspiração, e passa a contar histórias fantásticas, de milagres e do poder divino se manifestando na terra. O contador da história parece ao mesmo tempo fascinado e com medo de narrar, por não se sentir à altura do grande feito.

Minelvino (1926-1999) nasceu na Bahia, num povoado chamado Palmeiral, e trabalhou como garimpeiro. Aos 22 anos começou a criar versos e, ao longo da carreira, escreveu sobre os mais variados assuntos: desde poemas de amor, religiosos, dedicados a política ou sobre o cotidiano. O seu primeiro folheto foi escrito em 1949 (chamava A enchente de Miguel Calmon e o desastre do trem de Água Baixa).

Uma curiosidade: o próprio Minelvino comprou uma impressora manual e rodava os seus folhetos. O poeta deixou registrado num cordel “Eu mesmo escrevo a estória / eu mesmo faço o clichê / eu mesmo faço a impressão / eu mesmo vou vender / e canto na praça pública / para todo mundo ver”.

9. A vida de Pedro Cem, de Leandro Gomes de Barros

A vida de Pedro Cem

Em A vida de Pedro Cem lemos a história de vida de um personagem rico contada pelo cordelista paraibano Leandro Gomes de Barros (1865-1918).

O personagem Pedro Cem tinha tudo o que o dinheiro podia comprar - o sobrenome Cem, aliás, é uma referência a quantidade de bens que o rico tinha (cem armazéns, cem alfaiatarias, cem currais, sem casas alugadas, cem padarias, etc).

Pedro Cem era o mais rico
Que nasceu em Portugal
Sua fama enchia o mundo
Seu nome andava em geral
Não casou-se com rainha
Por não ter sangue real

Apesar de ter tido muito dinheiro, Pedro Cem nunca socorreu ninguém ao seu redor, nunca ajudou quem precisava. O destino acaba por se virar contra ele e o milionário perde todo o dinheiro que tinha, ficando na rua da amargura.

Leandro Gomes de Barros fez enorme sucesso com a literatura de cordel no seu tempo. O autor começou a escrever folhetos em 1889 e viajou pelo interior para vender os poemas que imprimia na tipografia. Leandro foi um raro caso de poeta que vivia da própria obra.

10. A alma de uma sogra, de João Martins de Ataíde

A alma de uma sogra

Com muito humor o poeta João Martins de Ataíde (1880-1959) conta a história de um velho que tem a mão lida por uma cigana e confessa que, ao longo da vida, teve cinco sogras, todas terríveis.

Veiu uma d’essas ciganas
que lê a mão da pessôa,
leu a mão d’um velho e disse:
- Vossa mercê anda atôa,
de cinco sogras que teve
não obteve uma bôa.

O velho vai relembrando os eventos e dando detalhes de cada sogra. Ele conta como as mães das suas mulheres infernizaram a sua vida em todos os casamentos que teve. Em alguns casos, o velho confessa que já previa problemas antes de casar, mas em outros foi pego de surpresa.

Nascido na Paraíba, o poeta João Martins de Ataíde (1880-1959) lançou o seu primeiro folheto em 1908 (chamava Um preto e um branco apurando qualidades). Além de escritor, Ataíde foi editor e lançou vários outros cordelistas tendo sido um nome fundamental para a difusão do cordel no país.

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Rebeca Fuks
Rebeca Fuks
Formada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2010), mestre em Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2013) e doutora em Estudos de Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e pela Universidade Católica Portuguesa de Lisboa (2018).