As Sem-Razões do Amor, de Drummond (análise do poema)


Carolina Marcello
Carolina Marcello
Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes

Quando o assunto é amor, é quase impossível não relembrarmos as palavras de Carlos Drummond de Andrade. Na verdade, são várias as composições nas quais o poeta brasileiro se dedicou, de maneira sublime, a descrever o sentimento amoroso nas suas mais diversas facetas.

As Sem-Razões do Amor, poema publicado na obra Corpo (1984), foi escrito na fase final da vida do autor, que veio a falecer em 1987. Aparentemente simples, a composição carrega mensagens complexas sobre um dos sentimentos mais inexplicáveis que existem.

Poema As Sem-Razões do Amor

Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou de mais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.

Análise do poema

Primeira estrofe

Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

O verso inicial do poema, que se repete abaixo, parece resumir aquilo que o sujeito procura transmitir ao longo de toda a composição. "Eu te amo porque te amo", ou seja, o amor é apresentado como algo que não se pode explicar ou justificar.

Pelo contrário, trata-se de um sentimento que o sujeito não pode racionalizar, apenas sabe que está lá. No seu entendimento, o amor não exige que a outra pessoa se comporte de determinada maneira, não espera nada do outro.

Mais do que isso, faz com que o apaixonado aceite as suas falhas, os seus defeitos. Descrito como uma forma de encantamento, de "estado de graça", apresenta um poder transformador na vida do sujeito.

Drummond desconstrói o ditado popular que determina que "amor como amor se paga". Na sua perspectiva, não precisa ser correspondido para ser verdadeiro, não deve cobrar retribuição.

Segunda estrofe

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Na segunda estrofe, mantém a mesma linha de pensamento, afirmando que o amor não pode ser vendido nem comprado, é algo que damos sem esperar alguma forma de compensação.

Não se focando apenas no casal, o sentimento parece uma lente capaz de modificar tudo em volta, estando presente em todas as coisas: "no vento / na cachoeira, no eclipse".

Mesmo assim, ele "foge a dicionários" porque nenhuma definição será adequada ou abrangente o suficiente para explicá-lo. Da mesma forma, não segue um conjunto definido de regras: não podemos adivinhar o que vai acontecer, até onde o sentimento amoroso vai nos conduzir.

Terceira estrofe

Eu te amo porque não amo
bastante ou de mais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Para amar alguém dessa forma, o sujeito afirma que não pode amar "bastante ou de mais" a si mesmo, já que a outra pessoa passa a ser prioridade, ficando muitas vezes na sua frente.

Isso porque o eu lírico acredita que não se pode trocar amor, e não está querendo convencer a outra pessoa a amá-lo de volta. Defende que "amor é amor a nada", ou seja, o sentimento existe e vale em si mesmo, "feliz e forte".

Assim, podemos depreender que só o fato de amar alguém altera o modo como vive e encara a realidade.

Quarta estrofe

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.

Nos versos finais do poema, define o amor como algo que pertence à família da morte, que é parecido com ela. No entanto, acaba sendo mais forte, porque consegue superá-la, existir para além dela.

Nesta estrofe, Drummond explica o caráter paradoxal do amor. Se por um lado, pode ser eterno, indestrutível, por outro, é extremamente frágil, e muitas vezes efémero, algo que pode durar para sempre ou desaparecer num segundo.

Significado do poema As Sem-Razões do Amor

O jogo de palavras presente no título do poema (a assonância entre "sem" e "cem") está diretamente relacionado com o seu significado. Ainda que alguém tente enumerar uma centena de razões para sua paixão, nunca será capaz de explicá-la.

Numa visão bastante madura, o poema descreve o amor com algo que acontece em nós e modifica tudo em volta. Ainda assim, ele deve ser generoso, não fazer cobranças, nem esperar nada em troca.

Lembrando que o sentimento pode viver eternamente ou morrer em um instante, sublinha o caráter contraditório e volátil do amor, onde parece residir também a sua magia.

Sobre Corpo (1984)

O livro Corpo - Novos Poemas foi lançado em 1984, pela Editora Record. As 124 páginas de poesia são acompanhadas por ilustrações do artista e arquitecto Carlos Leão. Na capa figura também uma aquarela do pintor.

Capa do livro Corpo de Drummond (1984)
Capa do livro Corpo - Novos poemas (1984).

Na obra, do alto da sabedoria dos seus 82 anos, o poeta reflete sobre temáticas universais como a morte, o amor, as relações humanas e a velhice, entre outras.

Este período da sua lírica, apontado pelos teóricos como "fase da memória", se foca bastante nas lembranças do autor. Assim, as suas palavras acabam traduzindo uma espécie de balanço que faz sobre a vida, enumerando as conclusões (e as novas dúvidas) a que chegou.

Sobre Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade (31 de outubro de 1902 — 17 de agosto de 1987) tem sido apontado como o maior poeta nacional do século XX. Uma das figuras principais da segunda fase do Modernismo brasileiro, a sua influência na nossa literatura é incalculável.

A sua poesia está repleta de comentários sociais e políticos, refletindo igualmente sobre questões metafísicas e angústias cotidianas do sujeito comum.

Drummond - foto Folhapress
Carlos Drummond de Andrade, fotografia por Folhapress.

Entre os vários temas sobre os quais Drummond versou, o amor é, sem dúvida, um dos principais. Suas palavras sobrevivem à passagem do tempo e se mantêm atuais e pertinentes para amantes de todas as idades. Também por isso, seus poemas de amor continuam sendo tão populares.

Confira a leitura de Bruna Arantes, integrada no projeto Toda Poesia:

Assim como outras composições do autor, As Sem-Razões do Amor também foi transformada em canção. No ano 2000, durante um show, Tunai e Milton Nascimento apresentaram uma versão musicada do poema, integrada no disco Certas Canções.

Escute abaixo:

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Carolina Marcello
Carolina Marcello
Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes e licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Apaixonada por leitura e escrita, produz conteúdos on-line desde 2017, sobre literatura, cultura e outros campos do saber.