A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa (resumo e análise do conto)


Rebeca Fuks
Rebeca Fuks
Doutora em Estudos da Cultura

O conto A terceira margem do rio foi publicado no livro Primeiras estórias, de Guimarães Rosa, lançado em 1962.

A narrativa breve é uma obra-prima que multiplica perguntas no leitor, o enredo gira em torno de um homem que abandona tudo para ir viver, sozinho, em uma canoa, no meio do rio.

Resumo

O conto é narrado por um personagem não nomeado que não consegue compreender a escolha peculiar do pai. Nos primeiros parágrafos do texto o narrador afirma que o pai era uma criatura absolutamente normal, com rotinas vulgares e sem qualquer estranheza. A família, composta por pai, mãe, irmão e irmã, é retratada como uma família qualquer do interior brasileiro.

Até que, em determinado momento, o pai resolve construir uma canoa. Ninguém percebe bem o motivo da decisão, mas a construção segue, apesar dos estranhamentos. Por fim, a canoa fica pronta e o pai parte com a pequena embarcação.

Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.

Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente.

De nada adianta os pedidos dos parentes e amigos que se colocam na beira da água implorando para o sujeito retornar. Ele permanece lá, ilhado, sozinho, na perenidade do tempo. As mudanças vão aparecendo com o avançar dos dias: os cabelos crescem, a pele escurece do sol, as unhas ficam enormes, o corpo definha de magreza. O pai transforma-se numa espécie de bicho.

O filho, narrador do conto, com pena do pai, lhe manda, as escondidas, roupas e mantimentos. Enquanto isso, na casa sem o patriarca, a mãe encontra alternativas para driblar aquela ausência. Primeiro convoca seu irmão para ajudar nos negócios, depois encomenda um mestre para os filhos.

Até que a irmã do narrador se casa. A mãe, angustiada, não permite que haja festa. Quando o primeiro neto nasce, a filha vai a beira do rio mostrar o bebê ao recém avô na esperança que ele regresse. Nada o desvia, porém, do seu objetivo de permanecer na canoa.

Após o casamento e o nascimento do bebê, a irmã vai embora com o marido. A mãe, transtornada ao testemunhar a situação miserável do marido, acaba por se mudar para a casa da filha. O irmão do narrador também parte rumo à cidade. O narrador, porém, decide permanecer ali, assistindo a escolha do pai.

A reviravolta do conto acontece quando o narrador toma coragem e vai lá dizer que aceita tomar o lugar do pai na canoa. Diz ele: "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..."

O pai, surpreendentemente, aceita a sugestão do filho. Desesperado, o rapaz volta atrás na oferta feita e foge de desespero. O conto se encerra cheio de perguntas: o que foi feito do pai? Qual terá sido o destino do filho? Por que motivo um sujeito abandona tudo para viver isolado em uma canoa?

O que você sabe sobre Guimarães Rosa?

O escritor brasileiro João Guimarães Rosa nasceu no dia 27 de junho de 1908, na cidade Cordisburgo, em Minas Gerais. Morreu no Rio de Janeiro, aos cinquenta e nove anos, no dia 19 de novembro de 1967.

Guimarães Rosa estudou em Belo Horizonte e se formou em medicina. Através de concurso público, virou capitão médico da Força Pública do Estado de Minas Gerais. Estreou na literatura com a publicação do conto "O mistério de Highmore Hall" na revista O Cruzeiro, em 1929.

Em 1934, fez concurso público e tornou-se cônsul. Atuou em Hamburgo, em Bogotá, em Paris. Como escritor, foi especialmente celebrado pela criação da obra-prima Grande sertão: Veredas, publicado em 1956.

Eleito em 6 de agosto de 1963, Guimarães Rosa foi o terceiro ocupante da Cadeira número 2 da Academia Brasileira de Letras.

Retrato de Guimarães Rosa.
Retrato de Guimarães Rosa.

Quer conhecer a casa onde viveu o escritor?

A casa onde o escritor nasceu e cresceu, em Cordisburgo, interior de Minas Gerais, foi transformada, em 1974, em um museu e está aberta para a visitação do público. Além da própria construção, o visitante poderá encontrar artigos pessoais do escritor como peças do vestuário, livros, manuscritos, correspondências e documentos.

Casa_Guimaraes_Rosa
Casa Guimarães Rosa

Sobre a publicação de Primeiras estórias

A coletânea Primeiras estórias reúne 21 contos do escritor Guimarães Rosa. A maior parte dos contos se passa em lugares não identificados, mas quase todos no interior do Brasil. A antologia é considerada uma obra modernista. Os contos presentes em Primeiras estórias são:

1. As margens da alegria

2. Famigerado

3. Sorôco, sua mãe, sua filha

4. A menina de lá

5. Os irmãos Dagobé

6. A terceira margem do rio

7. Pirlimpsiquice

8. Nenhum, nenhuma

9. Fatalidade

10. Seqüência

11. O espelho

12. Nada e a nossa condição

13. O cavalo que bebia cerveja

14. Um moço muito branco

15. Luas-de-mel

16. A partida do audaz navegante

17. A benfazeja

18. Darandina

19. Substância

20. Tarantão, meu patrão

21. Os cimos

Primeira edição de Primeiras estórias.
Primeira edição da antologia Primeiras estórias.

Uma análise completa e detalhada: a leitura de José Miguel Wisnik

O pesquisador professor doutor José Miguel Wisnik dedicou uma palestra a reflexão proporcionada pela leitura do conto A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa. A aula quatro da série Grandes Cursos Cultura na TV apresenta uma leitura cautelosa e demorada da narrativa breve, ajudando o leitor a desvendar alguns dos mistérios centrais do conto.

Quando a literatura vira música: uma criação de Caetano Veloso e Milton Nascimento

A música A terceira margem do rio foi criada por Caetano Veloso e Milton Nascimento inspirada no conto misterioso de Guimarães Rosa. Lançada no CD Circuladô, de Caetano Veloso, a composição foi a nona faixa do álbum divulgado em 1991.

Conheça a letra da canção:

Oco de pau que diz:
Eu sou madeira, beira
Boa, dá vau, triztriz
Risca certeira
Meio a meio o rio ri
Silencioso, sério
Nosso pai não diz, diz:
Risca terceira

Água da palavra
Água calada, pura
Água da palavra
Água de rosa dura
Proa da palavra
Duro silêncio, nosso pai

Margem da palavra
Entre as escuras duas
Margens da palavra
Clareira, luz madura
Rosa da palavra
Puro silêncio, nosso pai

Meio a meio o rio ri
Por entre as árvores da vida
O rio riu, ri
Por sob a risca da canoa
O rio viu, vi
O que ninguém jamais olvida
Ouvi, ouvi, ouvi
A voz das águas

Asa da palavra
Asa parada agora
Casa da palavra
Onde o silêncio mora
Brasa da palavra
A hora clara, nosso pai

Hora da palavra
Quando não se diz nada
Fora da palavra
Quando mais dentro aflora
Tora da palavra
Rio, pau enorme, nosso pai

Capa do CD Circuladô.
Capa do CD Circuladô.

Das páginas para a tela: o filme de Nelson Pereira dos Santos

Lançado em 1994, o longa metragem dirigido por Nelson Pereira dos Santos também é inspirado no conto de Guimarães Rosa. O filme foi indicado ao prêmio Urso de Ouro no Festival de Berlim. O elenco é composto por grandes nomes como Ilya São Paulo, Sonjia Saurin, Maria Ribeiro, Barbara Brant e Chico Dias.

O filme está disponível na íntegra:

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Rebeca Fuks
Rebeca Fuks
Formada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2010), mestre em Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2013) e doutora em Estudos de Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e pela Universidade Católica Portuguesa de Lisboa (2018).