Música Ideologia de Cazuza (significado e análise)


Carolina Marcello
Carolina Marcello
Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes

Ideologia é o tema que dá título ao terceiro disco solo de Cazuza, lançado em 1988. A letra foi escrita pelo cantor e musicada por Roberto Frejat, amigo e antigo companheiro da banda Barão Vermelho.

O disco foi gravado em 1987, depois de Cazuza voltar dos Estados Unidos, onde fez um tratamento para a Aids. Ideologia foi uma das primeiras canções que escreveu após conhecer o seu diagnóstico, que é referido na própria letra.

A capa do disco também provocou controvérsia, misturando símbolos conhecidos que representavam valores totalmente diferentes. Entre eles, está a cruz suástica nazista, a foice e o martelo da classe trabalhadora, a estrela de Davi, entre outras.

Abordando vários temas ligados à sociedade e à cultura da época, a música foi uma das mais tocadas na rádio no ano do seu lançamento, conquistando o público e a crítica. O seu refrão, trágico e quase profético, continua na mente de muitos brasileiros, tantos anos depois.

Letra da música

Meu partido
É um coração partido
E as ilusões estão todas perdidas
Os meus sonhos foram todos vendidos
Tão barato que eu nem acredito
Eu nem acredito ah
Que aquele garoto que ia mudar o mundo
Mudar o mundo
Frequenta agora as festas do "Grand Monde"

Meus heróis morreram de overdose
Eh, meus inimigos estão no poder
Ideologia
Eu quero uma pra viver
Ideologia
Eu quero uma pra viver

O meu tesão
Agora é risco de vida
Meu sex and drugs não tem nenhum rock 'n' roll
Eu vou pagar a conta do analista
Pra nunca mais ter que saber quem eu sou
Saber quem eu sou
Pois aquele garoto que ia mudar o mundo
Mudar o mundo
Agora assiste a tudo em cima do muro, em cima do muro

Resumo

A música é um desabafo acerca da impotência e decepção do artista face à situação política e social do país. Membro de uma geração que sonhava com a liberdade, este indivíduo se desilude com o Brasil pós ditadura, conservador e moralista.

O eu lírico de "Ideologia" exprime a confusão e o vazio de muitos brasileiros que acabaram sendo assimilados pela sociedade que queriam mudar. Presos em rotinas difíceis, desistiram de pensar, perderam os valores pelos quais viver e lutar.

Análise da música

Estrofe 1

Meu partido
É um coração partido
E as ilusões estão todas perdidas
Os meus sonhos foram todos vendidos
Tão barato que eu nem acredito
Eu nem acredito ah
Que aquele garoto que ia mudar o mundo
Mudar o mundo
Frequenta agora as festas do "Grand Monde"

Os versos iniciais da música exprimem de forma genial o sentimento de frustração e tristeza que se sentia na época: "Meu partido / É um coração partido".

Desde o começo é evidente a insatisfação, a falta de orientação e de identificação política e ideológica deste sujeito poético.

Perdido, sem filiação política, não partilha visões do mundo ou princípios com nenhum partido ou grupo. Aquilo que o une ao coletivo, que o aproxima dos outros, é o sofrimento, a desilusão generalizada ("as ilusões estão todas perdidas").

Há um sentimento de revolta e até de traição que atravessa toda a letra. O sujeito menciona que seus "sonhos foram todos vendidos", referindo as esperanças para um Brasil pós ditadura que nunca se concretizaram. Longe da ingenuidade da juventude, o sujeito poético está tomando consciência das dificuldades da vida adulta, das injustiças que permanecem ao seu redor.

Existe também uma clara alusão ao sistema capitalista e à necessidade de trocar ambições e planos pelo trabalho diário, as obrigações cotidianas, a sobrevivência.

Olhando para o estado de sua vida atual, lembra de quem foi no passado, "aquele garoto que ia mudar o mundo". O seu tom é de mágoa e de surpresa também, como se de repente reconhecesse a incoerência dos próprios atos.

Assim, o sujeito poético percebe que, apesar de seus ideais revolucionários, acabou sendo integrado e assimilado pelo sistema que rejeitava. Passou a frequentar as festas da alta sociedade, a ser igual ao que criticava. "Grand Monde" era uma boate LGBT de São Paulo, frequentada por grandes figuras da sociedade e do panorama artístico da época, inclusive Cazuza.

Refrão

Meus heróis morreram de overdose
Eh, meus inimigos estão no poder
Ideologia
Eu quero uma pra viver
Ideologia
Eu quero uma pra viver

O refrão da música traça um retrato do contexto político e sociocultural da época, embora continue pertinente e atual ao longo dos anos. O primeiro verso fala de ícones da contracultura, como Jimi Hendrix e Janis Joplin, que estavam desaparecendo.

Vistos como potenciais salvadores, arautos da transformação social, agora estavam morrendo, muitos vítimas dos seus excessos com drogas. Para os que ficavam, sobrava um sentimento de orfandade e abandono.

O segundo verso dá conta da situação política e social na qual o país vivia. Depois de um período de ditadura militar (1964 - 1985) atravessado por autoritarismo, violência e supressão de direitos, o povo sonhava com uma liberdade que não chegou.

Em 1987, quando Cazuza escreveu a música, o país estava em um período lento de redemocratização, mas não existiam ainda eleições diretas (só chegaram em 1990).

Sendo que a nova Constituição só foi aprovada em 1988, a época era de avanços e recuos, e o conservadorismo imperava. Assim, a letra exprime a falta de escolha e de controle do sujeito poético sobre a situação, a sensação de derrota.

Diretas Já em Belo Horizonte 1984
Manifestação pelas eleições diretas em Belo Horizonte (1984).

O termo "ideologia" pode ter dois sentidos. O neutro (conjunto de ideias, princípios e doutrinas) e o crítico (instrumento de dominação, persuasão e manipulação). Na letra, a abordagem é a primeira, como Cazuza explicou em entrevista:

Quando fiz "Ideologia", nem sabia o que isso queria dizer, fui ver no dicionário. Lá estava escrito que indica correntes de pensamentos iguais e tal…

Assim, o sujeito precisa de uma ideologia para conseguir sobreviver. Procura doutrinas, princípios morais e sociais aos quais se agarrar, nos quais acreditar, em um momento que se sente perdido e sem rumo. Face ao seu estado de tristeza e insatisfação com a realidade, precisa se posicionar, tem que escolher um lado.

Estrofe 2

O meu tesão
Agora é risco de vida
Meu sex and drugs não tem nenhum rock 'n' roll
Eu vou pagar a conta do analista
Pra nunca mais ter que saber quem eu sou
Saber quem eu sou
Pois aquele garoto que ia mudar o mundo
Mudar o mundo
Agora assiste à tudo em cima do muro, em cima do muro

Famoso por abalar os alicerces da sociedade moralista e conservadora, nesta segunda estrofe fala abertamente sobre sexo e o vírus HIV. A epidemia da Aids estava matando de forma impiedosa, principalmente dentro da comunidade LGBT. O artista, que descobriu estar com a doença, deu voz a todos os medos que assombravam a sua geração.

O ato sexual começou a estar associado ao perigo, ao risco. A intimidade e o prazer agora tinham um lado sombrio e ameaçador, o que acabava aumentando a solidão dos indivíduos, isolados em seu próprio corpo. A liberdade sexual que a contracultura pregava tinha chegado ao fim, não existia mais o mote "sexo, drogas e Rock'n' Roll" nem o sonho de revolução.

Cronista e crítico da sua geração, o autor menciona também a difusão da psicanálise no Brasil durante os anos oitenta, talvez em resposta aos traumas e à crise identitária que assolava muitos brasileiros.

A lembrança do jovem idealista que era no passado surge como uma assombração que vem confrontá-lo com a sua postura atual. Com o tempo, foi desistindo de lutar e se acomodando à sociedade que sonhava transformar. Desiludido, confessa que agora "assiste a tudo em cima do muro", revelando passividade, apatia e falta de posicionamento.

Significado da música

Cazuza faz um retrato honesto e dolorido de sua geração, expondo sentimentos de impotência e pessimismo face ao Brasil. Neste tema, como em outros, o cantor mostra um espelho onde a sociedade brasileira pode se ver e rever, sendo confrontada com suas hipocrisias e incoerências.

O artista e seus companheiros sonhavam com um país livre de ditadura que nunca se concretizou, já que o Brasil manteve seus preconceitos e desigualdades sociais depois da queda do regime.

Sobre a música, o cantor declarou em uma entrevista:

(...) A gente achava que ia mudar o mundo mesmo e o Brasil está igual; bateu uma enorme frustração Nos conceitos sobre sexo, comportamento, virou alguma coisa, mas deixamos muito pelo caminho. A gente batalhou tanto e agora? Onde chegamos? Nossa geração ficou em que pé?

Como é habitual no trabalho de Cazuza, a música tem um caráter de provocação, é uma crônica de costumes e uma crítica social. Na letra, o autor se confronta com seus próprios ideais, que parecem ter se perdido nas amarguras do cotidiano.

Frustrado com uma geração que estava derrotada, sem espírito combativo e sem ideologia, assume a sua responsabilidade e chama os companheiros para a luta.

Escrita em 1987, a composição parece altamente profética, tão próxima dos dias de hoje como da época em que foi escrita. Porta voz da sua geração, Cazuza foi também um pensador brasileiro capaz de expor aquilo que a sociedade procura esconder e denunciar as injustiças que permanecem até o dia de hoje.

Análise do clip original

O vídeo começa entre restos, destroços, ruínas. Em meio ao caos, vamos encontrando símbolos famosos, associados a correntes de pensamento distintas e até opostas. Cazuza mistura martelo e foice do comunismo com a cruz suástica do nazismo. A estrela de Davi e o retrato de Jesus Cristo surgem com o Yin Yang chinês, o "paz e amor" hippie com o sinal do dólar, o símbolo anarquista com panfletos políticos.

Assim como na capa do disco, todos esses objetos formam a palavra "ideologia". Fica evidente que o cantor pretende mostrar o pensamento da sua geração como resultado de todas essas influências.

Surgem também imagens de figuras famosas e infames da cultura popular como Mao Tsé-Tung, Hitler, Albert Einstein, Sigmund Freud, Marilyn Monroe, Jimi Hendrix, Janis Joplin e Bob Marley. Todas essas figuras, representando ideais totalmente dispares, faziam parte do imaginário comum.

Mostrando vários pés caminhando (de sapatos, tênis, chinelos, sandálias), representa a diversidade, a multiplicidade do povo brasileiro e também a sua rotina apressada e exaustiva.

Cazuza aparece cantando em cima de uma televisão, crítica à mídia brasileira e ao povo que acreditava apenas naquilo que via na tela. Depois, canta em cima de pilha de livros, com uma cartola na cabeça, aponta o dedo aos acadêmicos e intelectuais da época.

A sátira recai também sobre o próprio cantor, que aparece em ateliês de arte, estúdios musicais e até andando de barco. Cazuza assume sua vida com os luxos da burguesia, embora continue provocando as camadas mais conservadoras da sociedade.

No final, podemos ver o cantor experimentando vários chapéus: de cowboy, chinês, com orelhas de Mickey, de cangaceiro, etc. Essa sobreposição parece apontar um povo perdido, confuso em meio a tantas influências, que parou de pensar e esqueceu quem é.

Sobre Cazuza

Agenor de Miranda Araújo Neto, mais conhecido pelo nome artístico Cazuza, foi um dos maiores cantores e compositores da música brasileira. Com letras profundas que refletiam sobre a sociedade e a cultura nacionais, carismático e provocador, foi também um agitador social e um pensador da sua época.

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Carolina Marcello
Carolina Marcello
Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes e licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Apaixonada por leitura e escrita, produz conteúdos on-line desde 2017, sobre literatura, cultura e outros campos do saber.