Auto da Compadecida (resumo e análise)


Rebeca Fuks
Rebeca Fuks
Doutora em Estudos da Cultura

A obra-prima do escritor brasileiro Ariano Suassuna foi escrita em 1955 e levada a palco pela primeira vez em 1956 no Teatro Santa Isabel. Auto da Compadecida é uma peça dividida em três atos e tem como pano de fundo o sertão nordestino. A obra foi uma das primeiras produções teatrais a carregar forte na tradição popular.

Caracterizada pela marcante presença do humor, a conhecida história ganhou um público ainda mais amplo em 1999, quando foi adaptada para a televisão (uma minissérie da TV Globo) e, no ano a seguir, virou longa metragem.

As aventuras de João Grilo e Chicó fazem parte do imaginário coletivo brasileiro e retratam com fidelidade o dia a dia daqueles que lutam pela sobrevivência em um meio adverso.

Resumo de Auto da Compadecida

João Grilo e Chicó são os amigos inseparáveis que protagonizarão a história vivida no sertão nordestino. Assolados pela fome, pela aridez, pela seca, pela violência e pela pobreza, tentando sobreviver num ambiente hostil e miserável, os dois amigos usam da inteligência e da esperteza para contornarem os problemas.

Atenção: contém spoilers!

O falecimento do cão

A história começa com a morte do cachorro da mulher do padeiro. Enquanto o cão estava vivo, a senhora, apaixonada pelo animal, tentou de todas as maneiras convencer o padre a benzê-lo.

Os dois funcionários da padaria do marido - os espertos João Grilo e Chicó - também embarcaram no desafio e intercederam pelo cão junto ao padre. De nada adiantou tamanho esforço, para desgraça da dona o cachorro morreu afinal sem ser benzido.

O enterro do animal

Convencida de que era necessário enterrar o animal com pompa e circunstância, a bela senhora tem a ajuda novamente dos espertos João Grilo e Chicó para tentar persuadir o padre a realizar o velório.

O maroto João Grilo diz então, em conversa com o padre, que o cão havia deixado um testamento onde prometia dez contos de reis para ele e três para o sacristão se o enterro fosse realizado em latim.

Depois de alguma hesitação o padre fecha negócio com João Grilo pensando nas moedas que receberia. O que ele não poderia imaginar é que apareceria o bispo a meio da transação.

O bispo fica horrorizado com a cena: onde já se viu um padre velar um cão (ainda por cima em latim!)? Sem saber o que fazer, João Grilo então diz que o testamento, na verdade, prometia seis contos para a arquidiocese e quatro para a paróquia. Mostrando-se também corrompível pelo dinheiro, o bispo faz vista grossa a situação.

A chegada do bando de Severino

A meio do negócio a cidade é invadida pelo perigoso bando do cangaceiro Severino. O bando mata praticamente todos (o bispo, o padre, o sacristão, o padeiro e a mulher).

Com medo da morte, João Grilo e Chicó tentam uma última saída: dizem para os membros do bando que tinham uma gaita benzida por Padrinho Padre Cícero que era capaz de ressuscitar os mortos e que poderiam entregá-la se os deixassem vivos.

Os cangaceiros não acreditam, mas os dois fazem uma demonstração. Chicó trazia escondido um saco com sangue e, quando João encena dar uma facada no amigo o que acontece é que a bolsa se rompe.

O bando acredita que o sujeito de fato morreu, até que João toca a tal gaita e Chicó supostamente ressuscita.

A morte do pobre João Grilo e o juízo final

O truque da gaita benta não se sustenta durante muito tempo e logo João Grilo acaba sendo morto pelos cangaceiros. Já no céu, todos os personagens se encontram. Chegada a hora do juízo final, Nossa Senhora intercede por cada um dos personagens.

Os considerados com difícil salvação (o padre, o bispo, o sacristão, o padeiro e a sua mulher) seguem direto para o purgatório.

A surpresa surge quando os respectivos religiosos são enviados direto para o purgatório enquanto Severino e o seu capanga, alegadamente criminosos, são mandados para o paraíso. Nossa Senhora consegue defender a tese de que os capangas eram naturalmente bons, mas foram corrompidos pelo sistema.

João Grilo, por sua vez, recebe a graça de voltar para o seu próprio corpo. Quando regressa à Terra, acorda e assiste o seu enterro, feito pelo melhor amigo Chicó. Chicó, por sua vez, havia prometido à Nossa Senhora que entregaria todo o dinheiro que tinha à Igreja caso João Grilo sobrevivesse. Como o milagre acontece, depois de muita hesitação os dois amigos fazem a devida doação prometida.

Análise de Auto da Compadecida

Linguagem utilizada

A peça Auto da Compadecida é profundamente marcada pela linguagem oral, Suassuna possui um estilo regionalista que pretende replicar com precisão a fala do nordestino:

JOÃO GRILO: Ó homem sem vergonha! Você inda pergunta? Está esquecido de que ela o deixou?

Os personagens possuem um mesmo registro de fala, compatível com o encontrado no ambiente do nordeste brasileiro, embora cada personagem tenha o seu discurso único e particular.

Para além da linguagem nordestina, convém lembrar uma série de elementos nos quais o autor investe para causar um efeito de verossimilhança: a narrativa faz, por exemplo, uso de objetos típicos nordestinos, figurinos habitualmente usados por moradores da região e até mesmo replica cenários do sertão que ajudam o espectador a imergir na história.

O dinheiro como aquilo que corrompe

No texto de Ariano Suassuna vemos como todos os personagens são corrompidos pelo dinheiro, até mesmo aqueles que supostamente não deveriam estar ligados à matéria (caso dos religiosos).

Vale lembrar o comportamento do padre, que aceitou suborno da mulher do padeiro para enterrar o cão e rezar uma missa, em latim, em homenagem ao animal.

JOÃO GRILO: Esse era um cachorro inteligente. Antes de morrer, olhava para a torre da igreja toda vez que o sino batia. Nesses últimos tempos, já doente para morrer, botava uns olhos bem compridos para os lados daqui, latindo na maior tristeza. Até que meu patrão entendeu, com a minha patroa, é claro, que ele queria ser abençoado pelo padre e morrer como cristão. Mas nem assim ele sossegou. Foi preciso que o patrão prometesse que vinha encomendar a bênção e que, no caso de ele morrer, teria um enterro em latim. Que em troca do enterro acrescentaria no testamento dele dez contos de réis para o padre e três para o sacristão.
SACRISTÃO, enxugando uma lágrima: Que animal inteligente! Que sentimento nobre! (Calculista.) E o testamento? Onde está?

Além do padre e do sacristão, também o bispo entrou na mesma jogada e demonstrou-se igualmente corrompível pelo dinheiro.

A inteligência como a única saída possível

Vemos ao longo da história como Chicó e João Grilo sofrem em meio a um cotidiano duro, marcado pela seca, pela fome e pela exploração do povo.

Diante desse contexto de penúria, o que resta para os personagens é usarem o único recurso que tem em mãos: a inteligência.

Noutro trecho da cena do julgamento, quando João Grilo procura recorrer a mais uma esperteza, para livrar-se da acusação do diabo, Cristo o adverte: “Deixe de chicana, João. Você pensa que isto aqui é o Palácio da Justiça?”

Os dois amigos não têm quase trabalho, não possuem praticamente dinheiro, não tiveram acesso ao conhecimento formal, mas lhes sobra esperteza, malandragem e perspicácia: Chicó e João Grilo observam as situações e rapidamente percebem como podem tirar proveito delas.

Crítica ao sistema

Os personagens humildes são vítimas da opressão provocada pelos coronéis, pelas autoridades religiosas, pelos donos das terras e pelos cangaceiros. Convém sublinhar que a peça é contada do ponto de vista dos mais humildes, e é com eles que o espectador cria imediata identificação.

JOÃO GRILO: Está esquecido da exploração que eles fazem conosco naquela padaria do inferno? Pensam que são o cão só porque enriqueceram, mas um dia hão de me pagar. E a raiva que eu tenho é porque quando estava doente, me acabando em cima de uma cama, via passar o prato de comida que ela mandava para o cachorro. Até carne passada na manteiga tinha. Para mim, nada, João Grilo que se danasse. Um dia eu me vingo.

Aqueles que deveriam proteger os mais pobres - as entidades católicas (representadas pelo padre e pelo bispo) - acabam demonstrando pertencerem ao mesmo sistema corrupto e, por esse motivo, são tão satirizados quanto todos os outros poderosos.

O humor

João Grilo e Chicó representam o povo oprimido e toda a peça é uma grande sátira da triste e cruel realidade nordestina. Apesar do tema tratado por Suassuna ser denso, o tom da escrita é sempre baseado no humor e na leveza.

Vemos também no texto o registro dos "causos", isto é, mitos e lendas que se perpetuam no imaginário popular:

CHICÓ: Bom, eu digo assim porque sei como esse povo é cheio de coisas, mas não é nada de mais. Eu mesmo já tive um cavalo bento. (...)
JOÃO GRILO: Quando você teve o bicho? E foi você quem pariu o cavalo, Chico?
CHICÓ: Eu não. Mas do jeito que as coisas vão, não me admiro mais de nada. No mês passado uma mulher teve um, na serra do Araripe, para os lados do Ceará.

A linguagem quase brincalhona, marcada pela espontaneidade, é uma das características da prosa do escritor que agrega graça à peça. Outro aspecto que colabora para o quesito é a construção dos personagens, que são muitas vezes caricaturais, trazendo ainda mais comicidade à trama.

Personagens principais de Auto da Compadecida

João Grilo

Um sujeito pobre e miserável, melhor amigo de Chicó, usa da sua esperteza para contornar as situações difíceis da vida. João Grilo representa uma parcela do povo nordestino que, diante de um cotidiano difícil, faz uso da malandragem e do improviso para se livrar de apertos.

Chicó

Amigo do peito de João Grilo, está ao seu lado em todas as aventuras e tenta se desvencilhar do cotidiano trágico que vive através do humor. É mais medroso do que o amigo e teme quando se vê embrenhado nas mentiras de João Grilo. Chicó é o típico sabido, que se vê obrigado à exercitar a imaginação para conseguir sobreviver.

Padeiro

Dono da padaria na região de Taperoá, o padeiro é o patrão de Chicó e João Grilo. Na vida pessoal tem uma mulher infiel por quem é apaixonado. O padeiro é um típico representante da classe média que tenta sobreviver, muitas vezes se fazendo às custas dos mais pobres.

A mulher do padeiro

Uma mulher infiel que socialmente se comporta como uma puritana. É apaixonada pelo cão e o trata melhor do que os seres humanos ao redor. A mulher do padeiro é um símbolo da hipocrisia social.

Padre João

Devido à sua posição religiosa como comandante da paróquia local, o padre supostamente era um sujeito incorruptível, despojado de ambições financeiras, mas que acaba por ser tão corrupto quanto qualquer outro ser humano. Vemos no padre João um retrato da ganância e da cobiça (por ironia um dos pecados capitais condenados pela Igreja).

Bispo

Superior ao padre em termos de hierarquia, o Bispo tenta puni-lo quando descobre a situação do velório do cão. Entretanto cai no mesmo erro do padre quando a propina também é oferecida a ele. O Bispo afinal se mostra tão corrompível e mesquinho quanto o padre.

Cangaceiro Severino

É o cangaceiro chefe do bando. Temido por todos na região, já fez uma série de vítimas e acabou caindo no mundo do crime por falta de oportunidades. O cangaceiro Severino é o representante de uma enorme parcela da população que acaba caindo em um destino de violência porque não teve outras hipóteses.

Nossa Senhora

Intercede por todos durante o julgamento final e intervêm com comentários inimagináveis como, por exemplo, quando toma a palavra para defender o Cangaceiro Severino. Nossa Senhora é profundamente bondosa e tenta levar todos para o paraíso: ela busca argumentos racionais e lógicos para justificar possíveis falhas de caráter.

Sobre a peça

A peça teatral com tema nordestino foi dividida em três atos. Escrita em 1955, Auto da Compadecida foi levado a público pela primeira vez no ano a seguir, em 1956.

Mas foi no ano seguinte, em 1957, no Rio de Janeiro, que a peça ganhou grande destaque. O Auto da Compadecida foi encenado no Rio de Janeiro durante o 1º Festival de Amadores Nacionais.

Muitos anos depois, em 1999, a história ganhou uma adaptação televisiva e no ano a seguir virou longa metragem.

Série de TV

O livro de Ariano Suassuna foi inicialmente adaptado para a TV como uma minissérie de 4 capítulos. O resultado foi exibido pela Rede Globo de Televisão entre 5 de janeiro e 8 de janeiro de 1998.

Devido ao enorme sucesso de público, os realizadores cogitaram criar um longo metragem (projeto que efetivamente seguiu em frente e deu origem ao filme O Auto da Compadecida, de Guel Arraes).

Filme O Auto da Compadecida

Dirigido por Guel Arraes com o roteiro assinado por Adriana Falcão, João Falcão e o próprio Guel Arraes, a adaptação para o cinema do clássico de Ariano Suassuna foi realizada pela Globo Filmes no ano 2000.

O longa metragem com 1h35min de duração conta com grande elenco (Matheus Nachtergaele, Selton Mello, Denise Fraga, Marco Nanini, Lima Duarte, Fernanda Montenegro, etc).

O longa foi filmado em Cabaceiras, no sertão da Paraíba, e quando foi exibido teve um rápido sucesso de público (mais de 2 milhões de espectadores brasileiros foram ao cinema).

Em termos de crítica, o filme fez sucesso no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro do ano de 2001. O Auto da Compadecida levou para casa os seguintes prêmios:

  • Melhor Diretor (Guel Arraes)
  • Melhor Ator (Matheus Nachtergaele)
  • Melhor Roteiro (Adriana Falcão, João Falcão e Guel Arraes)
  • Melhor Lançamento

Confira o trailer:

Quem foi Ariano Suassuna

Ariano Vilar Suassuna, conhecido pelo grande público apenas como Ariano Suassuna, nasceu no dia 16 de Junho de 1927 em Nossa Senhora das Neves, hoje João Pessoa, capital da Paraíba. Era filho de Cássia Villar e do político João Suassuna.

O pai de Ariano foi assassinado no Rio de Janeiro. Em 1942, Ariano mudou-se para o Recife, onde completou os estudos secundários e entrou para o curso de Direito.

Suassuana escreveu a sua primeira peça em 1947 (tratava-se de Uma mulher vestida de sol). Já no ano a seguir, em 1948, escreveu outra peça (Cantam as harpas de Sião ou O despertar da princesa) e pela primeira vez assistiu a um trabalho seu montado. Os idealizadores foram os membros do Teatro do Estudante de Pernambuco.

Em 1950 recebeu o seu primeiro prêmio (o Prêmio Martins Pena) pelo Auto de João da Cruz. Seis anos mais tarde virou professor de Estética na Universidade Federal de Pernambuco. Lecionou durante muitos anos até se aposentar em 1994.

Teve uma carreira no teatro e na literatura muitíssimo produtiva, com inúmeras peças e livros publicados. Suassuna morreu aos oitenta e sete anos no dia 23 de julho de 2014

Suassuna
Retrato de Ariano Suassuna.

Obras literárias de autoria de Ariano Suassuna

Peças de teatro

  • Uma Mulher Vestida de Sol (1947)
  • Cantam as Harpas de Sião (ou O Desertor de Princesa) (1948)
  • Os Homens de Barro (1949)
  • Auto de João da Cruz (1950)
  • Torturas de um Coração (1951)
  • O Arco Desolado (1952)
  • O Castigo da Soberba (1953)
  • O Rico Avarento (1954)
  • Auto da Compadecida (1955)
  • O Desertor de Princesa (Reescritura de Cantam as Harpas de Sião), (1958)
  • O Casamento Suspeitoso (1957)
  • O Santo e a Porca, imitação nordestina de Plauto (1957)
  • O Homem da Vaca e o Poder da Fortuna (1958)
  • A Pena e a Lei (1959)
  • Farsa da Boa Preguiça (1960)
  • A Caseira e a Catarina (1962)
  • As Conchambranças de Quaderna (1987)
  • Waldemar de Oliveira (1988)
  • A História de Amor de Romeu e Julieta (1997)

Ficção

  • A história do amor de Fernando e Isaura (1956)
  • Fernando e Isaura (1956)
  • Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta (1971)
  • As Infâncias de Quaderna (Folhetim semanal no Diário de Pernambuco, 1976-77)
  • História d’O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão / Ao Sol da Onça Caetana (1977)

Veja também:

Rebeca Fuks
Rebeca Fuks
Formada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2010), mestre em Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2013) e doutora em Estudos de Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e pela Universidade Católica Portuguesa de Lisboa (2018).