O Crime do Padre Amaro: resumo, análise e explicação do livro


Carolina Marcello
Carolina Marcello
Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes

O Crime do Padre Amaro, primeiro romance de Eça de Queirós, foi publicado em 1875, no Porto. De influências naturalistas, trata-se de um romance de tese, ou seja, uma obra escrita com o intuito de comprovar uma teoria científica ou filosófica.

No livro, o autor tece duras críticas ao clero e à burguesia da época, num retrato fiel e documental da sociedade contemporânea que marca a chegada do Realismo a Portugal. Pelo seu conteúdo, o livro causou uma grande polêmica quando foi publicado, tendo se transformado numa das obras-primas da literatura portuguesa.

Resumo do livro

O Crime do Padre Amaro retrata a corrupção moral dos membros do clero, contrapondo os mandamentos da Igreja Católica com os comportamentos dos padres descritos por Eça. A trama se centra sobretudo no romance proibido entre Amaro, padre jovem que chega à cidade de Leiria, e Amélia, filha da dona da pensão que o recebe.

A atração entre Amaro e a filha da dona da casa, Amélia, é evidente desde que se conhecem, aumentando cada vez mais, embora tentem evitar e esconder os seus sentimentos. Ela está noiva de João Eduardo que, percebendo a ligação platônica entre os dois, é totalmente dominado pelo ciúme e o ódio ao clero. Incentivado pelos companheiros da luta anticlerical, escreve um artigo devastador onde aponta, sem fornecer nomes, todos os defeitos e pecados dos padres da área.

Dionísia, a nova empregada de Amaro, percebe a paixão do padre pela moça e ajuda o casal a encobrir os seus encontros. Eles consumam a paixão e começam a ter um relacionamento secreto, mas Amélia se sente cada vez mais culpada e sofre com pesadelos e visões.

O amor acaba em tragédia quando Amélia engravida e é abandonada por Amaro. A moça é enviada para longe, a fim de esconder o caso, e o padre contrata uma "tecedeira de anjos" para matar o bebê assim que ele nascer. Amélia morre depois do parto, chorando pelo filho, que é assassinado em seguida. Já Amaro abandona Leiria e continua sendo padre.

Análise da obra O Crime do Padre Amaro

Composto por vinte e cinco capítulos, O Crime do Padre Amaro faz uma crônica de costumes da fé católica nas províncias portuguesas. A obra ilustra o modo como os "homens de Deus" manipulavam as mentes dos fiéis e até os valores e crenças que defendiam, em nome do benefício próprio.

Eça mostra também a cegueira de uma sociedade onde os indivíduos fecham os olhos para os seus próprios erros e defeitos, mas são rápidos a apontar e condenar os pecados alheios. Com um narrador onisciente, o leitor tem acesso a todas as informações, até mesmo os monólogos interiores e desejos secretos dos personagens. Isso nos permite perceber que, na sua essência, os eclesiásticos são iguais aos restantes homens.

A ação tem lugar em Leiria, a paróquia para onde Amaro é transferido. Aí, podemos notar ainda as marcas de um Portugal provinciano, extremamente religioso, onde todos se conhecem e comentam as condutas uns dos outros.

Passado entre 1860 e 1870, e fiel ao seu contexto histórico, o enredo ilustra os movimentos de ebulição do anticlericalismo. Deste modo, expõe e justifica o ódio que crescia em Portugal pelos representantes da Igreja Católica e o modo como estes conduziam o país.

Um novo padre em Leiria

A narrativa começa com a notícia da morte do antigo padre da Sé de Leiria e os boatos da chegada de Amaro. É através do povo da região que surge o retrato do protagonista.

Dizia-se que era um homem muito novo, saído apenas do seminário. O seu nome era Amaro Vieira. Atribuía-se a sua escolha a influências políticas, e o jornal de Leiria, A Voz do Distrito, que estava na oposição, falou com amargura, citando o Gólgota, no favoritismo da corte e na reação clerical.

Esta descrição está próxima da realidade, já que Amaro era afilhado de uma marquesa e usou os seus contatos para deixar a paróquia pobre onde estava e ser transferido para Leiria. Logo procura Cônego Dias, que foi seu professor de moral no seminário, pedido que encontre uma pensão para o acomodar.

No diálogo entre Dias e o coadjutor, percebemos que o seu plano é colocar Amaro vivendo em casa de Joaneira. A intenção é que este ajude a pagar as contas da sua amante, embora Dias negue o boato: "é uma uma grandíssima calúnia!".

Num tom profético, o coadjutor chama a atenção para o risco de colocar Amaro e Amélia debaixo do mesmo teto.

Por causa da Ameliazinha é que eu não sei. (...) Sim, pode ser reparado. Uma rapariga nova... Diz que o senhor pároco é ainda novo... Vossa senhoria sabe o que são línguas do mundo.

Mesmo antes da chegada de Amaro, é levantada a possibilidade de um amor ilícito com Amélia. É como se o destino determinasse que a proximidade dos dois resultaria num envolvimento apaixonado.

Por outro lado, é o próprio "crime" de Dias que proporciona as condições necessárias para que Amaro conheça e se apaixone por Amélia.

Infância e juventude de Amaro

Órfão aos seis anos de idade, Amaro fica aos cuidados da Marquesa de Alegros, que era patroa de sua mãe. A madrinha resolve encaminhá-lo para a vida eclesiástica, já que o menino era magro e tímido: "o seu encanto era estar aninhado ao pé das mulheres, no calor das saias unidas, ouvindo falar de santas".

O garoto vai aceitando o destino, embora a escolha não tenha sido sua, já que "nunca ninguém consultara as suas tendências ou a sua vocação”.

Pelo contrário, o seu interesse pelo sexo feminino aumenta com o tempo. Na realidade, as suas motivações para o sacerdócio iam muito além da fé:

Convinha-lhe aquela profissão em que se cantam bonitas missas, se comem doces finos, se fala baixo com as mulheres, — vivendo entre elas, cochichando, sentindo-lhes o calor penetrante, — e se recebem presentes em bandejas de prata.

Esta retrospetiva até aos anos de formação e a passagem pelo seminário fornecem dados importantes acerca da sua relação com a batina e a tentativa de repressão da libido:

E já antes de fazer os seus votos desfalecia no desejo de os quebrar.

Amaro e Amélia: amor proibido

Nos tempos do seminário assistimos a uma cena onde Amaro deseja a imagem da Virgem que tem na sua cela. Quando chega a Leiria, a primeira visão que tem de Amélia é semelhante à de uma santa: "uma bela rapariga, forte, alta, bem-feita, com uma manta branca pela cabeça e na mão um ramo de alecrim".

Este primeiro encontro entre os dois, embora não revele nada à partida, parece confirmar um certo caráter de predestinação. Se Amaro cresceu entre mulheres, Amélia foi "crescendo entre padres”, tendo chegado a considerar ser freira depois de um desgosto amoroso da adolescência.

Amélia conhece o noivo, João Eduardo, na procissão de Corpus-Christi. Embora assuma um relacionamento com ele, não o ama: “Estimava-o, achava-o simpático, bom moço; poderia ser um bom marido; mas sentia dentro em si o coração adormecido".

O seu coração desperta com a chegada de Amaro e assistimos, em paralelo, ao modo como pensam um no outro, nos dois pisos da casa. Ele "começou a sentir o tique-tique das botinas de Amélia e o ruído das saias engomadas que ela sacudia ao despir-se". Ela escutava "passos nervosos pisarem o soalho: era Amaro que, com o capote aos ombros e em chinelas, fumava, excitado, pelo quarto".

Quanto mais prestava atenção em Amélia, menos Amaro se preocupava com as suas obrigações de padre, deixando a sua mente se consumir pelo desejo.

Ao pé dela, muito fraco, muito langoroso, não lhe lembrava que era padre; o Sacerdócio, Deus, a Sé, o Pecado ficavam embaixo, longe, via-os muito esbatidos do alto do seu enlevo, como de um monte se veem as casas desaparecer no nevoeiro dos vales; e só pensava então na doçura infinita de lhe dar um beijo na brancura do pescoço, ou mordicar-lhe a orelhinha.

Devota desde criança, Amélia agora "desejaria abraçar, com pequeninos beijos demorados, o altar, o órgão, o missal, os santos, o Céu, porque não os distinguia bem de Amaro".

Depois da primeira investida do sacerdote, que beija a amada e é afastado, ele se sente rejeitado. Acredita que ela prefere "nome, uma casa, a maternidade" com João Eduardo, em vez das "sensações criminosas" e "os terrores do pecado".

Na verdade, ela "estava há muito namorada do padre", chegando mesmo a pedir a Nossa Senhora das Dores, em oração: "faz que ele goste de mim!”. Apesar disso, Amélia não consegue esquecer o risco em que se colocaria se consumasse a paixão com Amaro.

Teme o seu futuro e lembra da história de Joaninha Gomes, "que fora amante do padre Abílio" e acabou sendo rejeitada por ele e desprezada por todos, "de miséria em miséria":

Que exemplo, Santo Deus, que exemplo!... E também ela gostava dum padre! Também ela, como outrora a Joaninha, chorava sobre a sua costura quando o Sr., padre Amaro não vinha! Onde a levava aquela paixão? À sorte da Joaninha! A ser a amiga do pároco! E via-se já apontada a dedo, na rua e na Arcada, mais tarde abandonada por ele, com um filho nas entranhas, sem um pedaço de pão!

Amaro, pelo contrário, parece não temer as consequências divinas, acreditando que era "infração canônica, não um pecado da alma". Vai mais longe, escrevendo numa carta para a sua amada: "maior pecado cometes trazendo-me nesta incerteza e tortura, que até na celebração da missa estou sempre com o pensar em ti”.

João Eduardo e a luta anticlerical

Reparando na frieza da noiva e no fascínio que nutre por Amaro, João Eduardo se torna ciumento, rejeitando o padre e toda a sua classe.

Não confia em Amaro, nem na conduta e nas intenções dos restantes sacerdotes.

Instintivamente porém começou a detestar Amaro. Sempre fora inimigo de padres! Achava-os um "perigo para a civilização e para a liberdade"; supunha-os intrigantes, com hábitos de luxúria.

Eduardo, convencido de que "a menina traz namoro com o pároco", enfurecido e com a honra ferida, se dirige à redação da "Voz do Distrito". Aí encontra o dono do jornal, Doutor Godinho, que "se tomara muito hostil (...) à padraria”.

Descobre um aliado na luta anticlerical, que o incentiva a escrever o artigo "Modernos Fariseus". Aí expõe, além de outras coisas, a conduta de Cônego Dias e a atração de Amaro por Amélia:

Em tudo que cheirar a padre, para baixo! Havendo escândalo, conta-se! Não havendo, inventa-se!

O artigo, "uma galeria de fotografias eclesiásticas”, apontava os comportamentos mundanos dos vários padres de Leiria. Descreve Dias como "mestre da imoralidade" e acusa Amaro de "lançar na alma da inocente a semente de chamas criminosas".

Inicialmente, João Eduardo triunfa. Amaro é forçado a mudar de casa para evitar o escândalo e Amélia marca a data do casamento para calar os rumores. Contudo, logo ele é descoberto como autor do texto, e sofre as consequências de ter atacado o clero: é mal falado e abandonado por todos, mesmo Amélia, que desfaz o noivado.

Os vícios e a hipocrisia do clero

Observando a conduta destes padres, é fácil compreendermos a revolta de João Eduardo e seus companheiros. Desde o início da obra, o narrador coloca as críticas e as acusações ao clero na voz de outras personagens.

Logo no começo, é através dessa “voz do povo” que descobrimos que o padre que morreu era mal visto pela sua gula excessiva. Do mesmo modo, ficamos sabendo que Amaro não conquistou o cargo por mérito próprio, mas graças ao estatuto social de sua madrinha, a Marquesa.

Ao longo da narrativa, são inúmeros os comportamentos que não estão em concordância com a doutrina que estes homens pregam. Tal se torna visível, por exemplo, nos jantares partilhados por vários membros do clero. Entre portas, fazem várias coisas que consideram erradas: bebem, comem coisas luxuosas, falam mal de outras pessoas, discutem entre si, se chantageiam mutuamente, etc.

O “pecado da carne”, contudo, é a maior fraqueza deste clero representado por Eça de Queirós. O protagonista, que sempre rejeitou o celibato e quis ter uma família, resolve perseguir sua paixão por Amélia quando descobre que o padre mais velho, Dias, tinha um relacionamento secreto com Joaneira. Isso confirma, para o jovem, que não há nada de errado com o seu amor.

A noite caíra, com uma chuva fina. Amaro não a sentia, caminhando depressa, cheio de uma só ideia deliciosa que o fazia tremer: ser o amante da rapariga, como o cônego era o amante da mãe! Imaginava já a boa vida escandalosa e regalada.

Com o tempo, a fé de Amaro vai diminuindo e a sua visão sobre o sacerdócio se altera. Começa a considerar que “o comportamento do padre, logo que não dê escândalo entre os fiéis, em nada prejudica a eficácia, a utilidade, a grandeza da religião”.

Esse tipo de pensamento parece resumir a hipocrisia de todo esse clero que vivia quebrando as leis que impunha aos fiéis, crendo que em nada comprometeria a sua fé se mantivesse os pecados em segredo.

Consumação do amor e medo do pecado

Gradualmente mais apaixonado por Amélia e menos convencido sobre a necessidade do celibato, Amaro procura formas de se encontrar com a amada.

Dionísia, sua empregada, percebe a atração entre os dois e indica a casa do sineiro. Acrescenta que “para um senhor eclesiástico que tem o seu arranjinho, não há melhor”, demonstrando que se trata de um costume antigo.

O sineiro tinha uma filha doente que não conseguia sair da cama. Amaro convence todos que as visitas semanais de Amélia são para ensinar a menina a rezar.

Durante esse período, estão muito felizes e chegam a fantasiar com um futuro juntos, mas Amélia começa a ficar assustada com a possibilidade de um castigo divino.

Mais devota do que Amaro, fica assustada quando o padre a cobre com o manto da Nossa Senhora e tenta beijá-la. Começa a ter pesadelos e alucinações por causa da culpa, entra em colapso nervoso quando sonha que a santa pisa no seu pescoço.

Face ao nervosismo da moça, o padre se torna impaciente e agressivo, a ponto de Amélia achar, nunca ocasião, que ele parecia um demônio. Apesar de todas as dúvidas e do medo do Inferno, o amor fala mais alto e permanecem juntos.

Nos seus braços, todo o terror do Céu, a mesma ideia do Céu desaparecia; refugiada ali, contra o seu peito, não tinha medo das iras divinas; o desejo, o furor da carne, como um vinho muito alcoólico, davam-lhe uma coragem colérica; era com um brutal desafio ao Céu que se enroscava furiosamente ao seu corpo.

Gravidez, separação e isolamento

Amélia descobre que os seus medos se tornaram realidade e está grávida do padre: “Tinha chegado enfim o castigo, a vingança de Nossa Senhora”. Amaro busca a ajuda de cônego Dias, que logo lhe responde "Aí estão as consequências, meu caro colega".

Como todos esperavam, até o próprio casal, a relação tem que terminar de forma repentina, para evitar o escândalo. Amaro quer casar rapidamente Amélia com João Eduardo, para encobrir a paternidade da criança, mas o rival está desaparecido.

Dionísia vai atrás do seu paradeiro, mas Amélia recusa o casamento, revoltada e abandonada pelo padre:

O quê? Ele punha-a naquele estado e agora queria descartar-se dela e passá-la a outro? Era ela porventura um trapo que se usa e que se atira a um pobre?

Eventualmente, a moça começa a aceitar a ideia do casamento, pensando em passear de braço dado com o marido e criar o seu futuro filho. O plano não se concretiza porque João está no Brasil e o sonho de construir uma família é destruído.

A solução que Amaro encontra é convencer Dona Josefa a levar Amélia para longe. A velha beata que estava doente, teria a moça como acompanhante durante o repouso na casa de campo. Para isso, recorre à chantagem:

Que se ela não consentisse em encobrir a coisa era responsável por uma desgraça... Lembre-se a senhora que está agora com os pés pra cova, que Deus pode chamá-la dum momento a outro, e que se tiver na consciência este peso, não há padre que lhe dê a absolvição!... Lembre-se que morre para aí como um cão!

Pensando que o pai da criança era Fernandes, da loja dos panos, Josefa aceita ajudar a esconder a gravidez. Acredita que será recompensada por Deus, mas trata a mulher com frieza e crueldade.

Isolada enquanto sua mãe e suas amigas passavam férias na praia, Amélia caia "numa saudade vaga de si mesma, da sua mocidade e dos seus amores".

Com a visita do Abade Ferrão a casa de Josefa, Amélia se confessa e desabafa sobre as alucinações e os pesadelos que a perseguem. O sacerdote afasta a ideia de um castigo divino e apenas a aconselha a fazer aquilo que sabe, no seu coração, que é certo.

Essas vozes, se as ouve, e se os seus pecados são grandes, não vêm de detrás da cama, vêm-lhe de si mesma, da sua consciência.

Assim, quando Amaro vai visitá-la, ela rejeita os seus avanços. O casal se separa de vez.

Nascimento e morte

Amaro procura amas com quem possa deixar a criança quando nascer, mas chega à conclusão de que ela será a prova do seu "crime" e poderá denunciá-lo a qualquer momento.

Dionísia sugere Carlota, uma “tecedeira de anjos”, que mataria o bebê quando ele fosse deixado em casa dela. O padre combina o assassinato com a mulher e paga pelo serviço.

Enquanto isso, Amélia, como se previsse de novo o sofrimento futuro, tinha pesadelos com o parto:

Ora era um ser medonho que lhe saltava das entranhas, metade mulher e metade cabra; ora era uma cobra infindável que lhe saía de dentro, durante horas.

Como uma condenação pelo modo como foi concebido, o nascimento do filho é a sentença de morte de Amélia. Chorando e gritando quando ele é levado de seus braços, a mãe morre na mesma noite. O menino, que Amaro deixa em casa da "tecedeira", morre também. Dos três, Amaro é o único que sobrevive, continuando a sua vida no sacerdócio.

Religião versus ciência: uma obra naturalista

Sendo esta uma obra naturalista, questiona os princípios e as práticas da religião, privilegiando a visão da ciência e explorando os instintos humanos e os seus comportamentos.

Um exemplo disso é a resposta do médico quando examina Amélia e descobre que ela está grávida:

Bem, bem, pequena, não te quero mal por isso. Estás na verdade. A natureza manda conceber, não manda casar. O casamento é uma fórmula administrativa...

Essa perspetiva científica contrasta totalmente com os valores da Igreja, que ditavam que o sexo fora do casamento era um comportamento abominável que deveria ser condenado.

Para o médico, os impulsos sexuais fazem parte do ser humano, estando apenas restritos pelas convenções sociais: “Quero dizer que, como naturalista, regozijo-me”. Assim, a gravidez de Amélia seria a comprovação da sua tese.

Depois do parto, assistimos a uma conversa entre o médico e o abado Ferrão, na qual é explorada a tensão entre a religião e a ciência. O doutor desabafa, exprimindo a sua crítica ao modelo de Estado que forçava os meninos órfãos a escolher entre ser padre ou policial.

E agora, dizia o doutor trinchando o peito do frango, agora que eu introduzi a criança no mundo, os senhores (e quando digo os senhores, quero dizer a Igreja) apoderam-se dele e não o largam até a morte. Por outro lado, ainda que menos sofregamente, o Estado não o perde de vista... E aí começa o desgraçado a sua jornada do berço à sepultura, entre um padre e um cabo de polícia!

Defende que a religião é ensinada a uma criança "quando a pobre criatura ainda nem tem sequer consciência da vida". Por isso, não se trata de uma escolha, mas de uma imposição.

Vai mais longe, refletindo sobre a própria profissão eclesiástica e o modo como os jovens padres são empurrados para o sacerdócio e forçados a negar a sua própria natureza.

Em que consiste a educação dum sacerdote? Primo: em o preparar para o celibato e para a virgindade; isto é, para a supressão violenta dos sentimentos mais naturais. Secundo: em evitar todo o conhecimento e toda a ideia que seja capaz de abalar a fé católica; isto é, a supressão forçada do espírito de indagação e de exame, portanto de toda a ciência real e humana...

Esta passagem parece ser significativa enquanto resumo da postura da obra, e do próprio autor, face à religião católica do seu tempo.

Esta "fé cega" é encarada como a repressão dos comportamentos instintivos da humanidade e, pior, um fator que atrasa o desenvolvimento e a evolução da sociedade portuguesa.

Em suma, podemos afirmar que, com esta obra, Eça pretendia abalar os alicerces da vida social portuguesa. Mostra que, apesar da sua postura de superioridade moral, os "homens de fé" eram como todos os outros.

Retratando as suas falhas de caráter, o autor procura retirar estes homens do altar onde foram colocados pelo povo e questionar o seu verdadeiro papel no funcionamento da sociedade.

Importa ressalvar que "o crime do Padre Amaro" só era considerado um crime porque a sua profissão o forçava ao voto de castidade. Caso contrário, seria encarado com normalidade, como um amor entre dois jovens que se conhecem e apaixonam. É a proibição da Igreja que torna a união pecaminosa e conduz à tragédia.

Eça demonstra que estes homens são forçados a silenciar o seu desejo e a abraçando uma solidão que não querem. Vejamos o que escreve a esse respeito, sobre o protagonista:

Ele não abdicava voluntariamente a virilidade do seu peito! Tinham-no impelido para o sacerdócio como um boi para o curral!

Negando a falsa santidade destes padres, a obra também mostra o modo como estão dispostos a fazer de tudo para manter a fachada. Exemplo disso é o desenlace do romance entre o casal.

Embora o crime seja de Amaro, que é sacerdote, Amélia e seu filho pagam com a vida. O padre, apesar do sofrimento momentâneo, pode seguir a sua carreia noutro lugar, e não precisa nem de mudar a sua conduta.

O diálogo que mantém com o mestre no final da obra, quando visita Leiria, parece confirmar isso mesmo:

Então junto deles passaram duas senhoras, uma já de cabelos brancos, o ar muito nobre; a outra, uma criaturinha delgada e pálida, de olheiras batidas, os cotovelos agudos colados a uma cinta de esterilidade, pouff enorme no vestido, cuia forte, tacões de palmo.

- Cáspite! disse o cónego baixo, tocando o cotovelo do colega. Hem, seu padre Amaro?... Aquilo é que você queria confessar.

- Já lá vai o tempo, padre-mestre, disse e pároco rindo, já as não confesso senão casadas!

Personagens principais

  • Amaro - Conduzido ao sacerdócio por vontade de sua madrinha, cedo descobre o desejo pelas mulheres e a vontade de viver como um homem comum. Ao chegar a Leiria, se apaixona por Amélia e vai, gradualmente, deixando de lado todos os comportamentos esperados de um padre.
  • Amélia - Descrita como uma moça “de vinte e três anos, bonita, forte, muito desejada”, Amélia é filha da dona da pensão onde Amaro fica hospedado. Noiva de João Eduardo, se apaixona por Amaro. Abre mão de casar e construir uma família por amor ao padre.
  • Cônego Dias - Professor de moral no seminário enquanto Amaro era estudante, recebe o jovem em Leiria e o coloca vivendo em casa de Dona Joaneira, com quem tem um caso. Ajuda Amaro a esconder o seu envolvimento com Amélia.
  • Senhora Joaneira - Augusta Caminha, " a quem chamavam a Dona Joaneira, por ser natural de S. João da Foz", é mãe de Amélia. Recebe Amaro em sua casa e não desconfia da paixão entre o padre e a sua filha. Embora fosse uma mulher religiosa, era amante de Cônego Dias.
  • João Eduardo - Noivo de Amélia, começa a desconfiar da sua proximidade com Amaro. Os ciúmes despertam em si uma forte raiva perante todos os membros do clero, sendo autor do artigo de jornal que expõe as inúmeras falhas dos padres da região.
  • Dionísia - Quando Amaro sai de casa de Joaneira, contrata Dionísia para ser sua empregada. A mulher é a primeira personagem a perceber a paixão entre Amaro e Amélia, ajudando a encobrir os seus encontros secretos.
  • Dona Josefa - Depois da gravidez de Amélia, Josefa é a nova cúmplice do casal. Sendo uma mulher doente e de idade avançada, se isola na casa de campo com Amélia como sua companhia. Embora despreze a jovem pelo caráter ilícito do seu amor, aceita esconder a gravidez, esperando que isso a faça cair nas graças de Deus.

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Carolina Marcello
Carolina Marcello
Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes e licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Apaixonada por leitura e escrita, produz conteúdos on-line desde 2017, sobre literatura, cultura e outros campos do saber.